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Editorial

Obstrução arterial retiniana periférica associada com hiper-homocisteinemia: relato de caso

Peripheral retinal arterial obstruction associated with hyperhomocysteinemia: case report

Alexandre Kazuo Misawa1; Hisashi Suzuki2; Otacílio de Oliveira Maia Júnior3; Maria Teresa Brizzi Chizzotti Bonanomi4; Carlos Sérgio Nascimento de Melo5

DOI: 10.1590/S0004-27492008000500024

RESUMO

A hiperhomocisteinemia é fator de risco para fenômenos trombo-embólicos retinianos associados a quadro de oclusão vascular venosa e arterial. Descrevemos um paciente com obstrução arterial retiniana periférica, sem sinais de vasculite ativa, associada a proliferação de neovasos com tração vítreo-retiniana e hemorragia vítrea recidivante. O alto nível sérico de homocisteína decorrente de deficiência de vitamina B12 e ácido fólico, sem outras alterações na cascata da coagulação, inclusive com a pesquisa do fator V de Leiden, sugere que a hiper-homocisteinemia esteja diretamente ligada como fator causal deste quadro clínico. Embora apresentasse PPD elevado, o diagnóstico diferencial mais importante de doença de Eales foi menos considerado por ser diagnóstico de exclusão. O controle do quadro clínico foi feito com suplemento de vitaminas (B12 e ácido fólico) e fotocoagulação retiniana periférica. A homocisteína plasmática total deve ser dosada em pacientes com obstrução vascular retiniana, já que a hiper-homocisteinemia é fator de risco modificável e de fácil tratamento por meio de dieta ou suplementação vitamínica.

Descritores: Artéria retiniana; Oclusão da artéria retiniana; Homocisteína; Vasculite retiniana; Vasos retinianos; Relatos de casos

ABSTRACT

Hyperhomocysteinemia is a risk factor for thromboembolic events of the retina associated with vascular venous or arterial occlusion. We describe a patient with occlusion of the peripheral arteriolar network without active vasculitis, associated with neovascular proliferation, peripheral vitreous-retinal traction and relapsing vitreous hemorrhage. The high serum homocysteine level resulting from vitamin B12 and folic acid deficiency, without further changes in the coagulation cascade including the test for Leiden's Factor V, indicates hyperhomocysteinemia as a direct causal factor in this clinical condition. Despite a high PPD, Eales Disease, a major differential diagnosis, was not fully considered, since it is established by exclusion. The patient was treated with photocoagulation and vitamin supplements and the condition was successfully controlled. Patients with retinal vascular obstruction should have their total plasma homocysteine levels measured, since this modifiable risk factor can be easily treated with dietary approaches including vitamin supplementation.

Keywords: Retinal artery; Retinal artery occlusion; Homocysteine; Retinal vasculitis; Retinal vessels; Case reports


 

 

INTRODUÇÃO

O primeiro relato de trombose arterial associada com hiper-homocisteinemia foi publicado por McCully em 1969, sobre duas crianças com homocistinúria hereditária, caracterizada por retardo mental, anormalidades esqueléticas, oclusões vasculares e alterações oftalmológicas: ectopia de cristalino, degeneração retiniana periférica com risco para descolamento e obstrução vascular retiniana(1-2). Desde então, outros autores têm relacionado a hiper-homocisteinemia como fator de risco isolado e potencialmente modificável para aterosclerose e aterotrombose(3-5).

A homocisteína é um aminoácido essencial que participa da síntese de dois outros aminoácidos, metionina e cisteína, através das vias enzimáticas da remetilação e da transulfuração, respectivamente(3,5-6). Nesse processo metabólico, há participação das enzimas metionina sintetase, metileno-tetrahidrofolato redutase e cistationina-beta-sintetase com a participação das vitaminas B6, B12 e do ácido fólico. A homocisteína plasmática total em jejum varia de 5 a 15 µM/L no adulto normal, sendo considerada hiper-homocisteinemia grave aquela acima de 100 µM/L(3,5). O defeito genético leva à manifestação clínica de homocistinúria(2) e o quadro adquirido tem associação com eventos obstrutivos coronarianos e vasculares periféricos, inclusive retinianos(5).

Este relato descreve um paciente que apresentou hemorragia vítrea secundária à proliferação de neovasos retinianos periféricos associado à hiper-homocisteinemia.

 

RELATO DE CASO

EMC, 32 anos, sexo masculino, pardo, procedente de São Paulo, queixava-se de perda súbita da visão no olho direito (OD) há 2 dias, sem queixas sistêmicas. Referiu um episódio semelhante no mesmo olho há 4 anos, diagnosticado como hemorragia vítrea com resolução espontânea. Como antecedente pessoal, havia tido contato com irmão portador de tuberculose pulmonar em tratamento com esquema I (rifampicina, isoniazida e pirazinamida) há 2 meses. Ao exame, apresentava acuidade visual corrigida de conta dedos a 30 cm no OD e de 20/20 no olho esquerdo (OE); pressão intra-ocular de 16 mmHg em ambos os olhos (AO), biomicroscopia e gonioscopia sem alterações em AO. A fundoscopia no OD mostrou hemorragia vítrea associada a proliferação fibrovascular e, no OE, neovasos retinianos tracionados para o vítreo, semelhantes aos "sea-fan", na retina superior e nasal, associados a vários pontos de hiperplasia do epitélio pigmentado da retina (EPR) seguindo os vasos, mas sem sinais de vasculite ativa (Figura 1).

Os exames laboratoriais afastaram doença falciforme, evidenciando anemia macrocítica por deficiência de vitaminas (B12 e ácido fólico), hiper-homocisteinemia e um PPD forte reator (Quadro 1). Optou-se por reposições de Vitamina B12 (1000U IM 1x/semana por 1 mês) e ácido fólico (5 mg/dia VO por 1 mês), profilaxia para tuberculose com isoniazida por 2 meses, apesar de ter sido afastada doença ativa, conduta expectante no OD e fotocoagulação setorial com laser de argônio no OE (Figura 2). Após 1 mês do tratamento, os níveis séricos da homocisteína (12 µmol/L), vitamina B12 (715 pg/mL) e do ácido fólico (19,9 ng/mL) foram reestabelecidos à normalidade, com melhora da anemia. Nesse período, no OD, a hemorragia vítrea já havia sido reabsorvida, apresentando áreas de hiperplasia do EPR e tração vítreo-retiniana, não sendo necessário tratamento. A neovascularização no OE apresentou-se estável com a laserterapia. O paciente encontra-se em acompanhamento ambulatorial há 3 anos sem recidiva do quadro oftalmológico e acuidade de 20/20 em AO.

 

 

DISCUSSÃO

A hiper-homocisteinemia pode ser secundária a um erro inato do metabolismo, resultando em elevação acentuada de homocisteína no plasma (geralmente acima de 100 µmol/L) e na urina (homocistinúria). As causas mais comuns de hiper-homocisteinemia são as deficiências enzimáticas e as nutricionais de ácido fólico, vitaminas B12 e B6(3,5-6). Deficiências de vitamina B12 e do co-substrato folato podem elevar significativamente a homocisteína sérica, sendo que níveis séricos inadequados de vitaminas do complexo B respondem por aproximadamente 65% de todos os casos de hiper-homocisteinemia(7).

O mecanismo fisiopatológico exato pelo qual a homocisteína causa fenômenos tromboembólicos ainda é incerto, mas parece estar associado com disfunção e lesão endotelial, seguida de ativação de plaquetas e formação de trombo por diversos mecanismos: exposição da matriz subendotelial, perda da regulação vasomotora, formação de oxigênio reativo (peróxido de hidrogênio e superóxidos) e, com o estresse endoplasmático, desregulando o metabolismo lipídico gerando apoptose e inflamação das células endoteliais e promovendo formação de trombos com conseqüente obstrução vascular(5,7-9).

Estudos demonstram que hiper-homocisteinemia é considerada fator de risco para doença vascular retiniana, porém a deficiência congênita da enzima metileno-tetrahidrofolato redutase não está relacionada com aumento do risco do fenômeno trombótico(10-15).

A hiper-homocisteinemia é também considerada fator de risco para obstrução de veia central da retina (OVCR) e de ramo de veia central da retina. Alguns autores identificaram, em estudo retrospectivo, a homocisteína como fator de risco para OVCR(4). Outros estudos reforçaram esta associação(8,6,16). Nível de homocisteína maior que 15 µmol/L está associado com risco três vezes maior de desenvolver doença vascular retiniana(11,17), com obstrução venosa ou arterial, especialmente em pacientes abaixo dos 50 anos de idade(18-19). Apesar disso, o "Blue Montains Eye Study" não encontrou associação entre hiper-homocisteinemia e a ocorrência de êmbolos nos vasos retinianos(9).

Uma meta-análise realizada por outros autores, analisou um total de 614 pacientes e verificou que a doença vascular retiniana oclusiva estava associada com nível plasmático alto de homocisteína e baixo de ácido fólico, sem associação com os níveis séricos de vitamina B12 e B6(5). Apesar disso, o uso de vitamina B12 reduziu níveis de homocisteína plasmática; sendo, assim, aconselhável como terapia coadjuvante. A oclusão dos vasos periféricos da retina é relatada raramente em associação com a trombofilia secundária a hiper-homocisteinemia. Um quadro clínico semelhante ao apresentado foi descrito na mutação do fator V (fator de Leiden) num paciente com hemorragia vítrea e neovascularização periférica da retina temporal(15).

No presente relato, o diagnóstico diferencial deve ser feito com doença de Eales, tanto pela hemorragia vítrea como pela oclusão vascular e cicatrizes coriorretinianas. No entanto, a doença de Eales não tem etiologia definida, sendo descrita em homens jovens, saudáveis e mais comumente encontrada no subcontinente indiano. Caracteriza-se por vasculite retiniana periférica primária, mais comumente como periflebite que evolui para estágio isquêmico com proliferação de neovasos e conseqüente hemorragia vítrea. A etiologia ainda está indefinida, acreditando-se que seja multifatorial (imunológica, parasitária e molecular), com uma associação com partículas do Micobacterium tuberculosis, detectadas no humor vítreo, sendo seu diagnóstico presuntivo(20-21).

Portanto, relatou-se um paciente com obstrução arterial retiniana periférica associada a proliferação de neovasos com tração vítreo-retiniana periférica e hemorragia vítrea recidivante, sem sinais de vasculite ativa. O alto nível sérico de homocisteína, decorrente de deficiência de vitamina B12 e ácido fólico, sem outras alterações que pudessem ser detectadas na cascata da coagulação, sugere que a hiper-homocisteinemia esteja associada a este quadro clínico. Apesar de o paciente apresentar PPD elevado, ter tido contato com o irmão portador tuberculose e apresentar zonas de hiperplasia do EPR ao longo de alguns vasos retinianos, é pouco provável que a hipersensibilidade tuberculínica tenha relação com este quadro retiniano atípico. Apenas a reposição nutricional de vitaminas e o tratamento com laser de argônio estabilizaram o quadro clínico, sem necessidade do uso de antiinflamatórios. A homocisteína plasmática total deve ser dosada em pacientes com obstrução vascular retiniana, por ser um fator de risco modificável e de fácil tratamento. Uma vez diagnosticada a hiper-homocisteinemia, impõe-se a pesquisa de doenças de base associadas para que se possa obter uma melhor eficácia terapêutica.

 

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Endereço para correspondência:
Otacílio de Oliveira Maia Júnior
Hospital São Rafael, Fundação Monte Tabor
Av. São Rafael, 2.142 - Salvador (BA)
CEP 41253-190
E-mail: [email protected]

Recebido para publicação em 17.04.2007
Última versão recebida em 12.08.2007
Aprovação em 22.08.2007

 

 

Trabalho desenvolvido no Departamento de Oftalmologia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo - USP - Setor de Retina e Vítreo - São Paulo (SP) - Brasil.
Nota Editorial: Depois de concluída a análise do artigo sob sigilo editorial e com a anuência do Dr. Márcio Bittar Nehemy sobre a divulgação de seu nome como revisor, agradecemos sua participação neste processo.


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