Open Access Peer-Reviewed
Editorial

Lente de contato em crianças: aspectos epidemiológicos

Contact lens in children: epidemiological aspects

André Luiz Alves Salame1; Eduardo José Maidana Simon2; Fernando Leal3; César Lipener4; Daniela Brocchetto5

DOI: 10.1590/S0004-27492008000300008

RESUMO

OBJETIVO: Traçar o perfil epidemiológico de crianças encaminhadas para adaptação de lente de contato. MÉTODOS: Foi realizado estudo retrospectivo de pacientes registrados no Setor de lente de contato da Universidade Federal de São Paulo. Os pacientes com até 12 anos de idade foram avaliados quanto ao sexo, idade, diagnóstico, indicação e tipo de lente de contato testada na primeira consulta. RESULTADOS: Dos 73 prontuários avaliados, 34 (46,6%) pertenciam a crianças do sexo masculino e 39 (53,4%) a crianças do sexo feminino. A idade variou de 2 a 12 com média de 10,2 e desvio-padrão de 2,42 anos. O diagnóstico mais encontrado foi afacia em 16 (21,9%) crianças, seguido de ceratocone em 14 (19,1%), leucoma em 11 (15%), anisometropia em 10 (13,7%), ametropia em 9 (12,3%), astigmatismo irregular em 7 (9,5%) e ectopia lentis em 4 (5,4%). Uma criança era alta míope (1,3%) e outra emétrope (1,3%) que possuía desejo de usar lente de contato estética. Em relação às indicações, 52 (71,2%) pacientes tinham indicação médica, 9 (12,3%) indicação óptica e 12 (16,4%) indicação cosmética. Foram testadas lentes em 103 olhos sendo as mais testadas a rígida gás permeável esférica em 43 (41,7%), a gelatinosa esférica em 41 (39,8%) e a gelatinosa cosmética em 11 (10,6%). CONCLUSÃO: O perfil epidemiológico dos usuários de lente de contato nessa faixa etária tem como diagnóstico mais prevalente a afacia, a indicação mais freqüente a de ordem médica e a lente mais testada a rígida gás permeável esférica.

Descritores: Lentes de contato; Epidemiologia; Afacia; Anisometropia; Criança

ABSTRACT

PURPOSE: To describe the epidemiology of children submitted to contact lens fit. METHODS: Retrospective study of 73 children that had been submitted to contact lens fit at the "Universidade Federal de São Paulo". This study analyzed sex distribution, age, diagnosis, indications and contact lens fitted at first examination. RESULTS: 34 children (46.6%) were male and 39 (53.4%) female, aged between 2 and 12 years with mean of 10.2 and standard deviation of 2.42. The most common diagnosis was aphakia, in 16 (21.9%) cases. Keratoconus was present in 14 (19.1%), leucoma in 11 (15%), anisometropia in 10 (13.7%), refractive errors in 9 (12.3%), irregular astigmatism in 7 (9.5%), ectopia lentis in 4 (5.4%), high myopia in one case (1.3%) and one child (1.3%) had no ocular pathology, just wishing to change eye color. 52 (71.2%) had medical indication, 9 (12.3%) had optical indication and 12 (16.4%) had cosmetic indication. Contact lenses were fitted in 103 eyes, the most tested lens was rigid gas permeable in 43 (41.7%), soft lens in 41 (39.8%) and cosmetic soft lens in 11 (10.6%). CONCLUSION: Aphakia was the most common diagnosis among children in use of contact lens. The incidence of medical indication was higher than the others and the most tested lens was the rigid gas permeable one.

Keywords: Contact lenses; Epidemiology; Aphakia; Anisometropia; Child


 

 

INTRODUÇÃO

A correção óptica na infância é feita preferencialmente com óculos, pois estes não requerem cuidados especiais, são cômodos para os familiares e geralmente bem aceitos pelas crianças. Entretanto, existem condições onde só as lentes de contato (LC) conseguem melhorar a acuidade visual (AV) e/ou possibilitar a visão binocular. As principais indicações para uso de LC em crianças são: afacia, anisometropia, astigmatismo irregular (decorrente, freqüentemente, de traumas corneanos), alta miopia, alta hipermetropia, ceratocone, aniridia, albinismo, ectopia lentis e alguns casos de ambliopia e nistagmo(1).

As opções disponíveis para correção óptica da afacia na infância incluem óculos, LC, lentes intra-oculares (LIOs) e a epiceratofacia(2-4). Embora o óculos tenha um papel importante na correção da afacia bilateral, seu uso fica limitado quando a mesma é unilateral devido à aniseicônia, estética ruim e pior adesão(2). As LIOs propiciam uma melhor correção óptica e vêm sendo cada vez mais utilizadas nas cataratas pediátricas, porém a maior reação inflamatória, a instabilidade da refração e os efeitos a longo prazo do material das LIOs são motivos ainda de preocupação(2,5). Por esses motivos, a maioria dos cirurgiões hesita em implantar LIOs em crianças, especialmente nas menores de 2 anos(2). A epiceratofacia deixa de ser uma opção aceitável devido à baixa previsibilidade refracional, dificuldades de cicatrização e falência do implante(3). As LC vêm sendo usadas com sucesso na correção da afacia na infância, especialmente na afacia unilateral e em crianças menores de 2 anos de idade(2-4). Essa correção deve ser a mais precoce possível devendo-se associar estimulação retiniana para evitar ambliopia(6).

A anisometropia pode trazer dificuldade para o desenvolvimento da visão binocular, quando corrigida com óculos(1). As vantagens do uso de LC em relação ao óculos na anisometropia seriam: óptica pela ausência de aberrações e distorções periféricas, ortóptica por não ocasionar um efeito prismático, terapêutica por não permitir que a criança retire a correção evitando seu uso e estética(7). O uso de LC pode reduzir a aniseicônia e o efeito prismático criando uma condição mais propícia à fusão binocular do que seria possível com uso de óculos(8).

Nas altas miopias bilaterais a LC tem vantagem sobre o óculos, porque proporciona aumento relativo da imagem, supressão do efeito prismático e aumento do campo visual. Nos astigmatismos irregulares a LC pode reduzir a difração luminosa melhorando a fotofobia e corrigindo o astigmatismo causando uma regularização da superfície pelo filme lacrimal(1,9). Em casos de lesões corneanas após perfuração, as lentes rígidas gás permeáveis (LRGP) possuem melhor resultado visual em comparação com o óculos(10). Também em pacientes com nistagmo, constata-se que a correção óptica do erro refracional feita com lente de contato, é superior se comparada com a do óculos(11).

As LC cosméticas são usadas para diminuir a fotofobia em crianças portadoras de aniridia, albinismo, acromatopsia e grandes colobomas de íris. Em olhos sem visão são úteis para cobrir opacidades e outros defeitos corneanos, que podem trazer problemas psicológicos para as crianças(1).

Alguns autores descrevem também o uso de LC esclerais, que teriam como indicações visuais em crianças as ectasias corneanas primárias como ceratocone, ceratoglobo e degeneração marginal pelúcida e ainda afacias, altas miopias e pós-operatórios de transplante de córnea. As indicações terapêuticas destas lentes seriam principalmente na síndrome de Stevens-Johnson, mas também no penfigóide ocular cicatricial, ceratopatia de exposição, ceratites pós-herpéticas, Sjögren, deficiência congênita das glândulas de Meibomius e a ceratoconjuntivite límbica superior(12). Para uso contínuo como lente terapêutica em crianças têm-se preferido a lente de contato silicone-hidrogel que se mostra cada vez mais eficaz e segura nessa faixa etária(13).

Outro uso descrito de LC em crianças seria a adaptação de uma lente de contato rígida gás permeável (LRGP) na tentativa de controlar a progressão da miopia em crianças(14-15).

Em nosso estudo objetivamos traçar um perfil epidemiológico de usuários de lentes de contato nessa faixa etária observando as indicações mais freqüentes, os diagnósticos que conduzem a essas indicações e os tipos de lentes mais testados nestes casos.

 

MÉTODOS

Foi realizado estudo retrospectivo por meio de levantamento de 1.310 prontuários de pacientes registrados no Setor de LC da UNIFESP. Desta amostra, 73 pacientes apresentavam até 12 anos completos de idade e foram incluídos no estudo. O prontuário mais antigo datava de junho de 1988 e o mais recente de maio de 2007. Os pacientes foram avaliados quanto ao sexo, idade, raça, diagnóstico, indicação, uso prévio de óculos e/ou LC e tipo de lente de contato testada na primeira consulta. Os autores classificaram os diagnósticos em: afacia (decorrente de catarata congênita ou traumática), anisometropia, ceratocone, altas miopias, ametropias (incluindo hipermetropias, astigmatismos e baixas miopias), astigmatismo irregular, leucoma e ectopia lentis.

 

RESULTADOS

Dos 73 prontuários avaliados, 34 (46,6%) pertenciam a crianças do sexo masculino e 39 (53,4%) a crianças do sexo feminino. A idade da amostra variou de 2 a 12 com média de 10,2 anos, e desvio-padrão de 2,42. Em relação à raça, 61 (83,6%) crianças eram brancas, 12 (16,4%) foram classificadas como pardas e não havia nenhum paciente da raça negra ou amarela. O diagnóstico mais encontrado foi afacia, presente em 16 (21,9%) crianças, seguido de ceratocone em 14 casos (19,1%), leucoma em 11 (15%), anisometropia em 10 (13,7%) e ametropia em 9 (12,3%) pacientes. Os casos de astigmatismo irregular somavam 7 (9,5%) e ectopia lentis 4 (5,4%). Havia uma criança portando alta miopia (1,3%) e outra emétrope (1,3%) que possuía desejo de usar LC para alterar a cor dos olhos (Tabela 1). Foi observado que 41 (56,2%) crianças não usavam correção óptica, 30 (41%) faziam uso de óculos e apenas 2 (2,8%) já vieram fazendo uso de LC em sua primeira consulta em nosso serviço. Em relação às indicações de uso da LC constatou-se que 52 (71,2%) pacientes tinham indicação médica, 9 (12,3%) indicação óptica e 12 (16,4%) indicação cosmética (Tabela 2). Foram testadas lentes em 103 olhos sendo a rígida gás permeável (LRGP) esférica em 43 (41,7%) olhos, a gelatinosa esférica em 41 (39,8%) olhos, a gelatinosa cosmética em 11 (10,6%) olhos, a gelatinosa tórica em 3 (2,9%) olhos e LRGP Sopper em 1 (0,9%) olho. Adaptação de lente de contato a cavaleiro foi realizada em 2 (1,9%) olhos (Tabela 3). Em 11 (10,7%) olhos de 8 pacientes as LC testadas não foram prescritas, o motivo em 5 (4,8%) olhos foi a intolerância a LC, um paciente preferiu continuar a usar óculos, um paciente não teve melhora da AV com LC, um paciente portador de ceratocone apresentava ainda boa AV com óculos em uso, um paciente teve boa adaptação mas sua mãe ficou com muito medo de colocar e remover a LC e um paciente com astigmatismo irregular induzido por herpes foi encaminhado para transplante de córnea (Tabela 4).

 

 

 

 

 

 

 

 

DISCUSSÃO

O perfil epidemiológico dos usuários de LC com essa faixa etária mostra ser o diagnóstico mais prevalente nas crianças a afacia e a principal indicação a de ordem médica. As lentes mais utilizadas nas crianças são de materiais com indicações e propriedades para uso prolongado(1-3,6,8). O maior problema relacionado ao uso dessas lentes em crianças seria a perda da LC(6). Alguns autores preconizam como primeira escolha na correção da afacia as LC de elastômeros de silicone por apresentarem maior permeabilidade ao oxigênio, condutividade termal, facilidade de colocação e relativa segurança(1-3,8).

A lente mais testada nos pacientes foi a LRGP esférica porém alguns autores consideram a adaptação das lentes gelatinosas em crianças mais fácil que adaptar LRGP(1).

O abandono do tratamento com LC é outro problema relativamente freqüente em crianças, visto que não há quase motivação estética nessa faixa etária. O sucesso neste sentido depende do encorajamento e suporte dos pais(1,4,6,8,15). Foi observado que a intolerância a LC em crianças é maior no início do tratamento tendendo a diminuir com o passar do tempo(4,16).

Outro aspecto responsável pela descontinuação do tratamento é o custo do mesmo visto que crianças perdem freqüentemente a LC(1-3,6).

Um consenso é a necessidade de tratar a ambliopia o mais precoce possível e a cooperação dos pais é o aspecto mais importante para que isso seja realizado da maneira mais eficiente possível(1,6,8).

 

CONCLUSÕES

Em nossa amostra, a principal indicação para o uso de lentes de contato em crianças foi de ordem médica, o diagnóstico mais freqüente foi a afacia e a lente mais testada foi a rígida gás-permeável esférica. Concluímos ser o uso de LC em pacientes com até 12 anos de idade um recurso válido e importante na tentativa de melhorar a visão em olhos afetados por variadas patologias onde se justifique a indicação, devendo ser prática de rotina em centros terciários de referência em oftalmologia.

 

REFERÊNCIAS

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Endereço para correspondência:
André Luiz Alves Salame.
Rua Colônia da Glória, 453 - Apto. 162 - Bloco B
São Paulo (SP) CEP 04113-001
E-mail: [email protected]

Recebido para publicação em 23.08.2007
Última versão recebida em 19.02.2008
Aprovação em 02.03.2008

 

 

Trabalho realizado no Setor de Lente de Contato da Universidade Federal de São Paulo - UNIFESP - São Paulo (SP) - Brasil.


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