Milton Ruiz Alves1; Breno Barth Amaral de Andrade3
DOI: 10.1590/S0004-27492000000600012
ATUALIZAÇÃO CONTINUADA
SOCIEDADE BRASILEIRA DE CÓRNEA E LENTES DE CONTATO (SOBLEC)
Bacterial keratitis
Milton Ruiz Alves (1), Breno Barth Amaral de Andrade (2)
A ceratite bacteriana constitui causa importante de déficit visual, associando-se frequentemente a situações em que ocorrem alterações nos mecanismos de defesa corneana. Diagnóstico e tratamento imediatos podem limitar a perda de tecido, minimizar a cicatrização e reduzir a necessidade de cirurgia futura.
Etiologia - Cerca de 90% dos casos de ceratite bacteriana são causados por organismos incluídos em um destes quatro grupos 9:
1. Micrococcaceae (Staphylococcus, Micrococcus)
2. Streptocococcus sp
3. Pseudomonas sp
4. Enterobacteriaceae (Citrobacter, Klebsiella, Enterobacter, Serratia, Proteus)
Os organismos mais comumente encontrados são: Pseudomonas sp, Staphylococcus sp, Streptococcus sp e Proteus sp 13, 16.
Patogênese - Mecanismos de defesa local impedem o desenvolvimento de ceratites infecciosas em hospedeiros normais apesar da presença de flora microbiana diversa nas pálpebras e conjuntiva. Constituem parte da defesa: epitélio corneano íntegro, filme lacrimal com imunoglobulinas e enzimas como lisozima, beta-lisina e lactoferrina, radicais livres na camada de mucina do filme lacrimal e a ação de limpeza das pálpebras durante o piscar. Este conjunto de fatores torna o ambiente da superfície ocular desfavorável para o crescimento de bactérias 2. Enquanto a maioria das bactérias são incapazes de vencer as defesas do hospedeiro (agentes oportunísticos podem produzir infecção quando a defesa do hospedeiro está comprometida), Neisseria gonorrhoae, Corynebacteria diphtheria, Hemophyilus e Listeria podem invadir o epitélio corneano íntegro 6.
Ceratite bacteriana e lente de contato - Pseudomonas é o organismo mais frequentemente isolado de ceratite infecciosa em usuários de lentes de contato hidrofílicas 1, 5, 10, 15. O uso de lentes de contato representa ser o principal fator de risco para o desenvolvimento de ceratite bacteriana. Calcula-se um aumento de 10 a 15 vezes no risco de ceratite infecciosa no uso continuado de lentes de contato quando comparado com o uso diário. A incidência anual estimada de ceratite por 10.000 usuários é 4,1 para uso diário de lente de contato hidrofílica; 20,9 para o uso continuado de lente hidrofílica; 2,0 para lente rígida convencional (PMMA) e 4,0 para lente rígida gás permeável 12, 14. A maior parte das complicações relacionadas com o uso das lentes de contato dá-se por falta de obediência dos usuários às orientações de manutenção e troca das lentes, que facilitam a formação de depósitos 15. Os depósitos, além de provocar desconforto e turvação visual podem ocasionar reações imunoalérgicas, facilitar a aderência de microorganismos e levar à infecção 10. Pseudomonas é especialmente capaz de aderir-se à superfície da lente, especialmente na presença de depósitos 3. Hipóxia durante o fechamento palpebral (durante o sono) resulta em compromisso da barreira epitelial, permitindo a adesão e subsequente invasão do organismo 4.
Resposta corneana - A liberação de toxinas e fatores quimiotácticos resultam em destruição tissular, edema, e infiltrado polimorfonuclear (PMN). As respostas inflamatória e imune resultam em fagocitose do organismo e podem contribuir para dano tissular. Se a infecção é contida pela ação dos antibióticos e respostas do hospedeiro, ocorre reparação do tecido com formação de cicatriz. Se a infecção progride, destruição tissular e eventual perfuração podem ocorrer 2.
Apresentação clínica - Tipicamente há história de traumatismo ocular, doença corneana pré-existente, uso de lente de contato ou de corticosteróide tópico 11. Sintomas incluem dor, lacrimejamento, fotofobia, diminuição de visão, secreção purulenta e hiperemia conjuntival.
Pseudomonas aeruginosa tipicamente produz uma úlcera extensa, rapidamente progressiva, frequentemente com hipópio. O estroma é necrótico, com material amarelo-esverdeado aderido na superfície da úlcera. O edema corneano estende-se além do local do infiltrado, causando uma aspecto de vidro fosco 9.
Staphylococcus aureus e Streptococcus pneumoniae tendem a produzir uma úlcera redonda, branco-acizentada rodeada por pequena zona de edema que é usualmente vista em infecções gram-negativas. A úlcera permanece relativamente localizada mesmo quando progride em profundidade no estroma. Hipópio é variável. Ceratite por Staphylococcus pode exibir infiltrados profundos múltiplos e microinfiltrados adjacentes à lesão principal que podem ser confundidos com lesões satélites típicas de infecção fúngica 9.
A presença de ar no estroma corneano ou câmara anterior sugere infecção por Clostridium 13. Em ceratites por bactérias menos virulentas como Moraxella, Mycobacterium, Nocardia e anaeróbios, o epitélio corneano pode estar intacto e o infiltrado pode ser não supurativo, estes quadros tendem a seguir um curso mais indolente do que o devido a maioria dos cocos gram-positivos e bastonetes gram-negativos 13.
Ceratite cristaliniana infecciosa é uma outra forma de ceratite indolente. Observam-se lesões que podem variar na aparência desde opacidades pequenas, redondas, estreladas, até lesões grandes, ramificadas que se apresentam em formações com forma de agulhas dentro do estroma corneano (representam o espraiamento linear da bactéria). Constituem alterações presentes em algumas doenças pela ausência ou resposta reduzida de infiltração de PMNs. Há um mínimo de inflamação no segmento anterior do bulbo ocular acompanhando as lesões. A maioria destes casos tem sido reportados como complicação de ceratoplastia parcial penetrante ou de outras cirurgias corneanas. As lesões frequentemente se originam do local de aplicação da sutura. A grande maioria dos casos tem se desenvolvido no uso tópico de longo tempo de corticóide e de antibiótico. Quando um organismo tem sido isolado, a-hemolítico estreptococos tem sido identificado na maioria dos casos. Contudo tem havido muitos relatos de uma variedade de bactérias aeróbicas e anaeróbicas, usualmente organismos de crescimento lento in vitro, de patogenicidade variável, bem como fungos filamentosos e Candida 13.
Diagnóstico laboratorial - Obtenção de material para citologia, bacterioscopia e cultura: após a instilação de 1 gota de proparacaína a 0,05%, remove-se o material purulento sobre a úlcera com zaragatoa. Com espátula de Kimura colhe-se material da região da margem da úlcera. Coloca-se o raspado em lâminas de vidro para Gram e Giemsa e em placas de cultura (ágar sangue, chocolate e Sabourand). Exames específicos deverão ser realizados frente a suspeita de algum microrganismo mais incomum. Em alguns casos, biópsia de córnea pode ser necessária 11.
Se o paciente já estiver sendo medicado, a suspensão da medicação por 24h a 48h aumenta a positividade do exame laboratorial. Não se deve suspender a medicação nos casos de úlceras graves e rapidamente progressivas. Nos usuários de lentes de contato pode ser útil o exame da lente, do estojo e das soluções utilizadas na manutenção da lente 11.
Tratamento - Após a colheita de material para citologia e cultura, empregam-se antibióticos que para o tratamento inicial de ceratites bacterianas devem ser efetivos contra um amplo espectro de bactérias gram-positivas e gram-negativas. Nos casos de úlceras superficiais, com menos de 3 mm de diâmetro e localizadas na periferia da córnea pode ser instituída monoterapia empregando-se uma das fluroquinolonas disponíveis comercialmente (ciprofloxacina a 0,3%, ofloxacina a 0,3%). Nesses casos, a dosagem inicial do colírio é de 1 gota a cada minuto por 5 minutos (5 gotas), seguido de 1 gota de 5 em 5 minutos por 15 minutos (3 gotas) e então passar para 1 gota a cada hora 8.
Nos casos de úlceras severas, o tratamento inicial consiste da aplicação tópica de uma combinação de dois agentes fortificados (um com espectro voltado preferencialmente contra gram-positivos e outro contra gram-negativos) (Quadro 1). Uso de antibiótico subconjuntival ou sistêmico está indicado na presença de comprometimento escleral ou intra-ocular 8. Os colírios fortificados devem ser mantidos em geladeira e substituídos frequentemente porque apresentam tempo de validade curto.
A terapêutica inicial deve ser modificada baseando-se na identificação do organismo ou se há progressão da infecção combinada com resistência demonstrada do organismo aos antibióticos empregados (Quadro 2). As técnicas de preparação de soluções de antibióticos a serem aplicados como colírio fortificado ou como soluções para injeção subconjuntival estão no Quadro 3.
É importante reconhecer que algumas bactérias, tais como Pseudomonas, podem prolongar a digestão do colágeno corneano por até 12 horas após a instituição da terapêutica antibiótica. Tal fato justifica a piora clínica que pode ser evidenciada durante o primeiro e o segundo dia de tratamento, justificada pela rápida destruição estromal por enzimas, o que por vezes dificulta a diferenciação entre áreas de supuração causada pela replicação do organismo e a supuração devida a resposta inflamatória estromal 9. Pseudomonas tende a persistir por 10 a 14 dias na córnea, fato que leva a um tempo de cicatrização prolongado 9. Portanto, casos de ceratite por Pseudomonas requerem terapêutica prolongada.
Úlceras corneanas causadas por organismos gram-positivos virulentos, tais como S. aureus e S. pneumoniae, podem permanecer relativamente inalterados por 1 a 2 dias e depois mostrar rápida melhora com cicatrização entre 7 e 10 dias 9.
Ceratites causadas por bactérias de relativamente baixa virulência (S. epidermidis, Moraxella) geralmente melhoram rapidamente dentro 1 a 2 dias com o organismo eliminado dentro de 5 a 7 dias 9. Alguns organismos (S. pneumoniae, algumas cepas de Moraxella) podem evoluir rapidamente para perfuração a despeito de supuração mínima 9.
Após 36 horas do início do tratamento, deve-se reduzir o número de instilações do(s) antibiótico(s). Terapêutica prolongada é recomendada para o tratamento de organismos que persistem no tecido corneano, como Pseudomonas, e para outros que respondem lentamente à terapêutica antibiótica, tais como Mycobacterium, Nocardia, bactérias anaeróbias e outras 9.
Não esquecer de avaliar e corrigir quaisquer anormalidades na posição ou na função das pálpebras, assim como, instituir cicloplegia e midríase para aliviar a dor e a inflamação.
O uso de inibidores enzimáticos em ceratite bacteriana é controverso. O uso tópico de corticóide pode ser considerado em casos de necrose estromal com controle aparente da replicação do(s) organismo(s) envolvido(s). Inicialmente deve ser administrado em baixas concentrações por 1 a 2 dias para testar efeitos adversos e aumentado, posteriormente, se necessário 9.
Sinais e sintomas de melhora devem ser avaliados, considerando-se: diminuição da dor, diminuição da densidade de infiltrado e do edema estromal, reepitelização, margens de aspecto mais delimitado e diminuição da reação da câmara anterior. A terapêutica antibacteriana deve ser mantida por 10 a 14 dias 13.
Falta de resposta terapêutica- Se a ceratite progride a despeito da terapêutica agressiva, considerar como possíveis agentes etiológicos: bactéria atípica, fungo, herpes e outras causas não infecciosas. Infecções mistas e superinfecções podem, também, ocorrer. Frente a piora abrupta do quadro clínico, colher material para novo exame laboratorial. A persistência de inflamação pode levar a alterações estruturais importantes representadas por opacificação corneana, desorganização do segmento anterior, glaucoma secundário, extensão escleral, perfuração corneana e endoftalmite9.
Em casos de descemetocele, perfuração ou progressão da ceratite, terapias cirúrgicas como uso de adesivo tecidual, retalho conjuntival e transplante de córnea podem ser utilizadas 13.
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(1) Professor Livre Docente na Clínica Oftalmológica do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HCFMUSP) e na Clínica Oftalmológica do Hospital das Clínicas da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas.
(2) Pós Graduando Doutorado na Clínica Oftalmológica do HCFMUSP