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Editorial

Alterações oculares na doença de Chagas crônica: comprovação na região endêmica de Água Comprida (MG)

Ocular alterations in chronic Chagas' disease: evidence at endemic Água Comprida region

João Antonio Prata1; João Antonio Prata Jr2; Dalmo Correia3; Aluizio R. Prata4

DOI: 10.1590/S0004-27492000000600003

RESUMO

Objetivo:Comprovar na região endêmica de Água Comprida (MG) a maior incidência de anisocoria e menor pressão intra-ocular (Po) em chagásicos anteriormente observados em outra região endêmica da doença de Chagas (Mambaí, GO). Material e métodos: Em estudo prospectivo, mascarado e pareado quanto a idade, sexo e cor, foram analisados 190 pacientes (95 pares de chagásicos e não-chagásicos). Em 84 pares, realizou-se estudo fotográfico da pupila para determinação do diâmetro pupilar e freqüências de anisocoria (diferença >0,3 mm). Em 95 pares, foi estudada a pressão intra-ocular entre chagásicos e não-chagásicos. Resultados: No grupo chagásicos foram observados 25 casos de anisocoria (29,8%) e nos não-chagásicos, 10 ocorrências (11,9%), diferença essa estatisticamente significante (p = 0,007). Não houve diferenças estatisticamente significantes para o diâmetro pupilar entre os grupos tanto para OD quanto para OE. Os chagásicos mostraram uma Po média de 11,3±2,5 mmHg em OD e de 11,3±2,4 mmHg em OE e os não-chagásicos uma Po de 13,1±2,6 e 13,1±2,5 mmHg respectivamente, diferenças essas estatisticamente significantes entre chagásicos e não-chagásicos tanto para OD quanto para OE (pOD=pOE <0,0001). Tais diferenças mantiveram-se quando a Po foi comparada quanto ao sexo (feminino p =0,002, masculino p= 0,003). Conclusão: Os resultados comprovam a maior freqüência de anisocoria e menores valores de pressão intra-ocular em pacientes portadores da forma crônica da doença de Chagas.

Descritores: Anisocoria; Pressão intra-ocular, alterações; Doença de Chagas

ABSTRACT

Purpose: To prove, also at Água Comprida (MG), the higher incidence of anisocoria and lower IOP levels in chagasic patients formerly detected at Mambai (GO), both endemic Chagas' areas. Material and methods: In a prospective, masked and paired study, 190 patients were evaluated. Pairing was according to age, sex and race. Pupil diameter was determined in 84 pairs using photography. Anisocoria was considered when a difference > 0.3 mm was observed. IOP was analyzed in 95 pairs. Results: 25 chagasic patients (29.8%) and 10 controls (11.9%) had anisocoria. This difference was statistically significant (p = 0.007). There were no differences in pupil diameter between chagasic patients and controls for OD or OS. Chagasic patients had a mean IOP of 11.3±2.5 mmHg (OD) and 11.3±2.4 mmHg (OS) and controls showed mean IOPs of 13.1±2.6 and 13.1±2.5 mmHg respectively. The differences between chagasic patients and controls were statistically significant for OD and OS (pOD=pOE <0.0001). The comparison of IOP levels according to sex was also statistically significant (females p =0.002, males p= 0.003). Conclusion: The results demonstrate a higher frequency of anisocoria and lower IOP levels in chronic chagasic patients.

Keywords: Anisocoria; Intraocular pressure alterations; Chagas' disease

INTRODUÇÃO

A doença de Chagas é uma infeção generalizada, com fase aguda seguida de crônica e de caráter endêmico, causada pelo Trypanosoma cruzi.Ocorre nas Américas, inclusive nos Estados Unidos (regiões sudoeste e sudeste). Constitui importante problema de saúde pública no Brasil, Argentina, Venezuela, Bolívia, Chile, Peru e Uruguai. Trata-se de endemia rural que prolifera onde há condições precárias de saneamento e habitação. É a mais importante endemia da América do Sul, onde a sua prevalência é estimada em doze milhões de pessoas. No Brasil, existem várias regiões endêmicas da doença de Chagas, onde calcula-se que existam cinco milhões de chagásicos 1, 2.

Na forma crônica da doença de Chagas há alterações degenerativas das células nervosas dos plexos intramurais do sistema nervoso autônomo periférico e do sistema nervoso central, acarretando a diminuição numérica dessas células 3. A desnervação na doença de Chagas tem sido comprovada em diversos estudos histopatológicos. Há hipersensibilidade de órgãos comprometidos frente a diversas drogas com ação no sistema nervoso autônomo ou a impulsos nervosos. Tem sido demonstrada hipersensibilidade a agentes parassimpaticomiméticos de ação direta (pilocarpina) 1 , 3 , 4.

O comprometimento oftálmico na fase crônica tem sido objeto de poucas referências na literatura oftalmológica, apesar de que os estudos iniciais de Carlos Chagas referirem estrabismo e ceratite 1. Bicas informa ter observado maior resposta hipotensora ocular ao colírio de pilocarpina em pacientes chagásicos crônicos 5. Já Idiaquez salienta ter observado uma maior resposta miótica frente ao colírio de pilocarpina diluído nas pupilas de portadores da doença de Chagas crônica 6.

Recentemente, estudos pareados e duplo-cego desenvolvidos pelos autores na região endêmica de doença de Chagas de Mambaí (GO) apresentaram novos dados sobre o envolvimento ocular nesta doença. Observou-se uma maior freqüência de anisocoria (7,1%) e menores valores de pressão intra-ocular em portadores da forma crônica da doença de Chagas de forma estatisticamente significante em relação ao grupo controle 7-9.

A doença de Chagas apresenta algumas variações de apresentação conforme a região endêmica. Por exemplo, existem regiões onde prevalece a forma cardíaca e outras onde a digestiva é mais frequente 1-3. Devido a essas variações de apresentação, é de grande importância a constatação de repercussões da doença em várias áreas endêmicas para a sua melhor compreensão.

O objetivo do presente estudo é comprovar na região endêmica de Água Comprida (MG) a maior incidência de anisocoria e menor pressão intra-ocular em chagásicos anteriormente observados em outra região endêmica da doença de Chagas (Mambaí GO) 7, 8.

 

MATERIAL E MÉTODOS

Foi realizado estudo mascarado pareado na região endêmica para doença de Chagas de Água Comprida (MG). Os pacientes foram selecionados dos integrantes do projeto de estudo populacional da doença de Chagas na região realizado pela Faculdade de Medicina do Triângulo Mineiro. Tal projeto compunha-se de equipe multi-disciplinar, que incluiu exame oftalmológico, a fim de determinar a prevalência e incidência da doença na região, bem como, suas repercussões. O pareamento foi procedido pelo grupo de análise estatística do projeto quanto a idade, raça e sexo. O protocolo do estudo foi previamente submetido para aprovação da Comissão de Ética Médica da Faculdade de Medicina do Triângulo Mineiro, tendo obtido a sua aprovação.

Foram selecionados para o estudo os pacientes previamente submetidos a exame oftalmológico completo que não mostravam alterações oftalmológicas capazes de interferir no diâmetro pupilar ou na pressão intra-ocular (Po). Foram excluídos os casos que mostravam sinais de trauma ocular, inflamação intra-ocular, ceratites, opacidades corneanas, catarata, alterações neurológicas, alteração dos reflexos pupilares, com baixa acuidade visual com melhor correção óptica, usuários de medicações sistêmicas capazes de alterar a Po ou diâmetro pupilar, glaucomatosos e portadores de Po > 21mmHg.

Preencheram os critérios de inclusão no estudo 190 pacientes (95 pares). Destes, 11 pares foram excluídos do estudo do diâmetro pupilar por recusas para o comparecimento para obtenção das fotografias.

Dos indivíduos selecionados para o estudo da Po (95 pares), 93 pares eram da raça branca e 2 da raça negra, sendo 52 do sexo feminino e 43 do masculino. A idade média do grupo chagásico foi de 53,6±13,8 anos. Já o grupo controle apresentou idade média de 51,9±13,5 anos. Dos pares incluídos no estudo do diâmetro pupilar (84 pares), apenas um par era da raça negra, sendo 45 do sexo feminino e 39 do masculino. A idade média dos chagásicos foi de 53,4±13,8 anos e dos não chagásicos de 52,6±13,9 anos (Tab. 1).

 

 

Para o estudo do diâmetro pupilar, foram obtidas fotografias em slides coloridos de 35mm com uso de lente macro e flash eletrônico incluindo ambos os olhos na mesma fotografia em sala com iluminação padronizada após a anuência do paciente. Os registros foram realizados a 26 cm da fronte do paciente, estando este sentado e posicionado em uma mentoneira. Para referência, junto a ambos bordos orbitário inferiores foram posicionadas duas réguas milimetradas iguais antepostas à pele. Para obtenção dos valores do diâmetro pupilar, as fotografias eram projetadas com magnificação aproximada de 10X e as pupilas medidas com paquímetro em seu diâmetro horizontal e vertical. Para cada caso, obtinha-se uma escala de correção pela medida da réguas milimetrada. Anotou-se o diâmetro pupilar de cada olho que para efeito de comparação estatística. Foi considerado o valor obtido da média aritmética entre os diâmetros vertical e horizontal corrigidos.

Considerou-se anisocoria a diferença entre os diâmetros pupilares superior a 0,3mm 10.

A pressão intra-ocular foi medida pelo tonômetro de Goldmann acoplado a lâmpada de fenda devidamente calibrado, após anestesia tópica e instilação de colírio de fluoresceína. As medidas foram obtidas sempre no período entre 10-13horas.

Após a obtenção dos resultados, foram constituídos dois grupos conforme o diagnóstico da doença de Chagas, ou seja, "chagásicos e controles". Para análise estatística, empregou-se o teste exato de Fisher para variáveis qualitativas. Para estudo das quantitativas, utilizou-se o teste de Wilcoxon para comparação do olho direito com o olho esquerdo e o de Mann-Whitney para comparação entre os grupos.

 

RESULTADOS

A comparação dos dados demográficos não mostrou diferenças estatisticamente significantes entre os grupos, tanto para os selecionados para o estudo do diâmetro pupilar como os para a análise da pressão intra-ocular (Tab. 1)

No grupo chagásicos foram observados 25 casos de anisocoria (29,8%). Já no controle, 10 pacientes (11,9%) preencheram o critério de anisocoria. O teste exato de Fisher mostrou que a diferença na freqüência de anisocoria entre os grupos foi estatisticamente significante (p = 0,007) (Tab. 2).

 

 

O grupo chagásico apresentou diâmetro pupilar médio de 4,3±0,8 mm para olhos direitos (OD) e de 4,5±0,9 mm para os esquerdos (OE). Já o grupo controle mostrou diâmetros de 4,5±0,9 mm e 4,6±0,9 para OD e OE respectivamente. Não foi detectada diferença estatisticamente significativa entre olhos direitos de chagásicos e dos controles e olhos esquerdos de chagásicos e controles pelo teste de Mann-Whitney (pOD=0,2, pOE=0,3) (Tab. 2).

Observou-se no grupo chagásico uma Po média de 11,3±2,5 mmHg em olhos direitos e de 11,3±2,4 mmHg em olhos esquerdos. No grupo controle os valores médios foram de 13,1±2,6 e 13,1±2,5 mmHg para olhos direitos e esquerdos respectivamente. A comparação dos valores de Po obtidos em olhos direitos de chagásicos e controles pelo teste de Mann-Whitney mostrou diferença estatisticamente significativa (p<0,0001). A mesma comparação para olhos esquerdos também demonstrou diferenças estatisticamente significantes (p<0,0001). Não foram observadas diferenças estatisticamente significantes entre OD e OE em ambos os grupos (pchagásicos=pcontroles=0,9) (Tab. 3).

 

 

A comparação entre os dois grupos considerando o sexo, mostrou diferenças estatisticamente significantes entre os grupos. A Po dos pacientes chagásicos foi estatisticamente menor que a dos controles para ambos os sexos (feminino p =0,002, masculino p= 0,003). A comparação entre o gênero feminino e masculino dentro de cada grupo não foi estatisticamente significante (chagásico p =0,1, controle p=0,2).

 

DISCUSSÃO

Os resultados observados no presente estudo são concordantes com os previamente publicados sobre o assunto 6-9. Entretanto cabe ressaltar que foram observados em uma amostra maior que as anteriores e em outra região endêmica.

A ratificação dos resultados previamente observados na região de Mambaí (GO) na área endêmica de Água comprida confirma o comprometimento ocular na fase crônica da doença de Chagas e são de significativa importância tendo em vista a diversidade de repercussões da doença conforme a área endêmica estudada. Tal fato sugere que o acometimento do sistema nervoso autônomo ocular independe de diferenças populacionais ou geográficas.

Por outro lado, ao contrário do observado na região de Mambaí 8, nesta série não foi observada diferença estatisticamente significante entre o diâmetro pupilar de chagásicos e não chagásicos. Tal fato pode ser devido a que neste estudo analisou uma amostra consideravelmente maior. Entretanto, concordantemente com o observado em Mambaí, detectou-se uma diferença estatisticamente significante na frequência de anisocoria. De forma inversa, em Mambaí não foram detectadas diferenças estatisticamente significantes entre os valores de Po entre chagásicos e não chagásicos para os pacientes do sexo feminino, ao contrário deste estudo onde a Po foi estatisticamente menor nos chagásicos em ambos os sexos 9.

Apesar da metodologia empregada não objetivar determinar o motivo pelo qual a Po foi menor no grupo chagásico que também apresentou maior freqüência de anisocoria, pode-se supor que tais achados sejam decorrentes de alterações do sistema nervoso autônomo ocular na doença de Chagas previamente descritas, tais como a hipersensibilidade ao colírio de pilocarpina diluído e a maior redução da Po em chagásicos frente a pilocarpina 2% 1-6, 8.

Os resultados do presente estudo confirmam a maior freqüência de anisocoria e menores valores de pressão intra-ocular em pacientes portadores da forma crônica da doença de chagas.

 

 


 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. Prata A. Chagas' Disease Inf Dis Clin Nor Am 1994;8:61-76.         

2. Schiffler RJ, Mansur GP, Navin TR, Limpakarnjanara TK. Indigenous Chagas' disease (American trypanosomiasis) in California. JAMA, 1984;25:2983-4.         

3. Koberle F. Patogenia da Moléstia de Chagas. Estudo dos órgãos musculares ocos. Rev Goiana Med 1957;3:155-80.         

4. Macedo V, Prata A, Silva A. Teste da pilocarpina na forma indeterminada da doença de Chagas. Rev. Goiana Med 1974;20:191-9.         

5. Bicas HAE. Ação da pilocarpina sobre o oftalmotono na moléstia de Chagas. Rev. Bras. Oftal, 1963;22:397-419.         

6. Idiaquez J. Parasympathetic desnervation of the iris in Chagas disease. Clin Auton Res 1992;2:277-9.         

7. Prata JA, Prata JAJ, Castro CN, Macedo V, Prata A. Anisocoria na fase crônica da doença de Chagas. Rev Soc Bras Med Trop, 1995;28:131-3.         

8. Prata JA, Prata JAJ, Castro CN, Macedo V, Prata A. A pupila na fase crônica da doença de Chagas e reação à pilocarpina e fenilefrina. Rev Soc Bras Med Trop 1996;29:567-70.         

9. Prata JA, Prata JAJ, Prata A, Macedo V, Castro CN. Pressão intra-ocular na forma crônica da doença de Chagas. Arq Bras Oftal, 1997;60:99-102.         

10. Loewenfeld IE. Simple central anisocoria. Transactions American Academy of Ophthalmology and Otology 1977;83:832-9.         

 

 

Faculdade de Medicina do Triângulo Mineiro, Universidade Federal de São Paulo-Escola Paulista de Medicina.

(1) Professor adjunto Faculdade de Medicina do Triângulo Mineiro.
(2) Professor orientador do Curso de Pós-graduação UNIFESP-EPM.
(3) Professor Universidade Nacional de Brasilia
(4) Professor visitante Faculdade de Medicina do Triângulo Mineiro.

Endereço para correspondência: João Antonio Prata - Av. Santos Dumont, 567 ¾ Uberaba (MG) CEP 38060-600. Fone: (34) 3332-0551. Fax: (34) 3321-7182

Nota Editorial: Pela análise deste trabalho e por sua anuência sobre a divulgação desta nota, agradecemos ao Dr. Epaminondas Castelo Branco Neto.


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