Mário Luiz Ribeiro Monteiro1; Hélio Benito Scapolan2
DOI: 10.1590/S0004-27492000000500012
RESUMO
Objetivo: Descrever dois pacientes que apresentaram constrição campimétrica importante e determinar a origem desta alteração visual causada pelo uso de vigabatrin, um anticonvulsivante que atua aumentando a concentração do ácido gama-aminobutírico no sistema nervoso central. Métodos: Os pacientes foram submetidos a exame e neuroftalmológico completo, avaliação cuidadosa da retina, campo visual com perímetro de Goldmann, tomografia computadorizada de crânio e órbitas, eletrorretinograma (ERG), imagem por ressonância magnética (1 paciente) e potencial visual evocado (1 paciente). Resultados: A acuidade visual se mostrou preservada; o primeiro paciente apresentava campo visual restrito à área central de 20 a 30 graus centrais e o segundo uma constrição leve a moderada. Os exames de neuroimagem foram normais assim como o potencial visual evocado. Observou-se palidez discreta de papila em 3 olhos estudados e estreitamento arteriolar muito discreto dos vasos retinianos. O ERG revelou alterações importantes caracterizada por redução da onda b (caso 1) e dos potenciais oscilatórios (caso 2). Conclusões: As alterações visuais causadas pelo vigabatrin são devidas a uma alteração retiniana, envolvendo provavelmente as células amácrimas, bipolares e ganglionares mas não se acompanham de uma alteração significativa à fundoscopia. Pacientes recebendo esta medicação devem ser seguidos de perto especialmente através da avaliação do campo visual central e periférico.
Descritores: Vigabatrin; Campo visual; Eletrorretinograma
ABSTRACT
Purpose: To describe two patients who presented with severe campimetric constriction and to determine the source of visual symptoms caused by vigabatrin, an anticonvulsant medication that increases brain gamma-aminobutyric acid. Methods: Patients were submitted to a complete neuroophthalmologic evaluation as well as a careful retina examination, Goldmann perimetry, computerized tomography of the brain and orbits, electroretinograms (ERG), magnetic ressonance imaging (1 patient) and visual evoked potential (1 patient). Results: Visual acuity was normal; the first patient had the visual field restricted to the 20 to 30 degree central area and the second, a mild to moderate constriction. Neuroimaging examinations were normal as well as the visual evoked potential. Mild optic disc pallor (3 eyes) and very slight retinal arteriolar narrowing was observed. ERG showed reduction of the b wave (case 1) and oscillatory potential responses (case 2). Conclusions: Visual alterations caused by vigabatrin are due to a retina dysfunction presumably involving the amacrine, bipolar and ganglion cells but there are no significant pathologic findings on fundoscopic examination. Patients receiving this medication should be followed closely with periodic central and peripheral visual field testing.
Keywords: Vigabatrin; Visual fields; Electroretinogram
INTRODUÇÃO
Vigabatrin é uma droga anticonvulsivante bastante efetiva no tratamento de crises convulsivas parciais. Sua ação se deve à inibição da enzima transaminase do ácido gama-aminobutírico que leva a um aumento da concentração desse ácido no sistema nervoso central. Embora neurotoxicidade caracterizada por edema intramielínico e vacuolização celular tenha sido observada em ratos e cães, acredita-se que isto não ocorra em primatas 1, 2.
Em 1997, Elke e colaboradores 3 relataram constrição severa e irreversível do campo visual em 3 pacientes que receberam vigabatrin, o que foi também observado por outros autores, na Europa e nos Estados Unidos 4-10. O objetivo deste trabalho é o de documentar 2 pacientes que apresentaram tal complicação nos quais foi possível demonstrar uma disfunção retiniana como causa da alteração visual, e chamar a atenção quanto à gravidade dessa complicação.
RELATO DOS CASOS
Caso 1
Paciente de 56 anos sexo masculino, portador de epilepsia parcial complexa de difícil controle iniciou em outubro de 1989, o uso de vigabatrin 2 gramas/dia, associado a carbamazepina 1700 mg/dia e primidona 750 mg/dia. Houve boa tolerância inicial ao remédio, embora 2 meses depois tenha referido embaçamento visual pela manhã que durou aproximadamente 2 semanas e melhorou espontaneamente. Seis meses após o início do tratamento vigabatrin foi aumentado para 4 gramas/dia com melhora acentuada das crises convulsivas, o que permitiu descontinuar a primidona e reduzir a dose de carbamazepina para 800 mg/dia. O paciente continuou a apresentar boa tolerância à medicação até que 10 meses após a sua introdução voltou a se queixar de embaçamento visual bilateral. Referia que acordava bem e passava a apresentar turvação visual em torno das 9:00 horas, que persistia durante todo o dia, sendo particularmente intensa pela manhã e que era associada a dificuldade na visão lateral.
O paciente foi orientado a realizar avaliação oftalmológica que foi feita em outro serviço, sendo constatadas apenas bolsas palpebrais. A acuidade visual corrigida encontrada, bem como o exame oftalmológico foram relatados como normais, mas um exame campimétrico não foi realizado. Um potencial visual evocado com estímulo padrão reverso de 14 e 28 segundos de arco foi normal. Foi proposta cirurgia corretiva nas bolsas palpebrais que foi realizada em janeiro de 1991. O paciente retornou queixando-se que persistiu a dificuldade no campo visual. Tomografia computadorizada e imagem por ressonância magnética de crânio e órbita foram normais e o vigabatrin foi reduzido progressivamente até ser descontinuado em maio de 1991.
Apesar da suspensão do vigabatrin o paciente continuou a se queixar de dificuldade na visão lateral, sendo encaminhado para avaliação neuroftalmológica. Queixava-se de perda na visão lateral que tinha tido evolução progressiva ao longo de aproximadamente 6 meses. Ao exame a acuidade visual corrigida era de 20/20 em cada olho e a motilidade ocular extrínseca, biomicroscopia e tonometria eram normais. As pupilas eram isocóricas e as reações se mostraram lentas à luz, mas não havia defeito aferente relativo. O fundo de olho mostrava palidez discreta e difusa de papila e retina de aspecto normal em ambos os olhos. O campo visual revelou constrição difusa e acentuada das isópteras com preservação do campo central (Figura 1).
O eletrorretinograma escotópico mostrou diminuição da amplitude da onda b em ambos os olhos. Observou-se também diminuição da amplitude das respostas aos estímulos flicker com luz branca e vermelha. O paciente permaneceu então inalterado do ponto de vista visual nos 8 anos subsequentes à suspensão do vigabatrin, sem qualquer evidência de melhora do campo visual.
Caso 2
Paciente de 41 anos, sexo masculino portador de crise parcial complexa, iniciou uso de vigabatrin 1 grama/dia associado a clobazam 60 mg/dia em novembro de 1997. Três meses depois a dose foi aumentada para 2 gramas/dia e 4 semanas mais tarde para 3 gramas/dia. Em agosto de 1998, vigabatrin foi aumentada para 4 gramas/dia com bom controle das crises e suspensão do clobazam. Em novembro o paciente começou a notar discreta alterações visuais sendo reduzida a dose para 3,5 gramas/dia. A dificuldade persistiu e um mês depois, começou a notar dificuldade visual na visão lateral relatando que esbarrava em objetos situados ao seu lado. A dificuldade parecia maior em locais com maior iluminação e menos acentuada no escuro. O vigabatrin foi suspenso, permanecendo no entanto as queixas visuais.
Ao exame oftalmológico, 3 meses após o início dos sintomas, a acuidade visual corrigida era de 20/20 em cada olho. As pupilas eram isocóricas e não havia defeito aferente relativo. A motilidade ocular extrínseca, biomicroscopia e tonometria de aplanação foram normais. O campo visual revelou contrição difusa das isópteras, especialmente para miras I/4e e I/2e e mais evidente no olho direito (Figura 2). O fundo de olho mostrava discreta palidez de papila no olho direito e estreitamento arteriolar retiniano muito discreto em ambos os olhos. O eletrorretinograma fotópico e escotópico revelou ondas a e b dentro dos limites da normalidade assim como as respostas flicker. No entanto o exame se apresentou alterado uma vez que observou-se redução importante nos potenciais oscilatórios de ambos os olhos.
DISCUSSÃO
Nos dois pacientes acima a alteração visual se caracterizou como uma constrição difusa do campo visual, com preservação da acuidade visual e exame fundoscópico praticamente normal. No primeiro caso, houve grande dúvida diagnóstica uma vez que tal alteração não havia sido relatada em pacientes utilizando vigabatrin. Como a acuidade visual e o fundo de olho se mostravam normais nas fases iniciais o diagnóstico permaneceu indefinido até a obtenção do campo visual e do eletrorretinograma. Da mesma forma, no caso 2, chamava a atenção a intensidade da queixa visual desproporcional aos achados no exame oftalmológico. Nesse caso, até mesmo as alterações eletrorretinográficas foram bastante discretas tendo o exame sido interpretado inicialmente como dentro dos limites da normalidade. Uma análise mais cuidadosa mostrou, no entanto, alterações nos potenciais oscilatórios confirmando a origem retiniana da perda visual.
Constrição difusa e discreta do campo visual é um achado pouco específico e muitas vezes resultante de lentidão nas respostas durante o exame particularmente em pacientes idosos. Da mesma forma, opacidades de meios e altas ametropias podem resultar em tais alterações. Constrições mais severas podem ocorrer especialmente em distrofias retinianas, como as retinoses pigmentárias e algumas doenças do nervo óptico como o glaucoma e a perineurite óptica. Deve ser lembrado ainda a possibilidade de perda visual funcional no diagnóstico diferencial de um campo tubular. Em nossos pacientes, a ausência de opacidades de meios e de glaucoma, de sinais de neuropatia óptica inflamatória e de alterações pigmentárias ao fundo do olho, bem como a exclusão por técnicas adequadas de perda visual funcional, nos levou inicialmente a grande dificuldade diagnóstica e a considerar que estivéssemos diante de alguma distrofia retiniana inicial, do tipo retinose pigmentária sem pigmento. Estas observações servem para enfatizar as dificuldades diagnósticas que podem ser encontradas diante de tais pacientes e sugerem que alterações mais discretas possam passar despercebidas em outros indivíduos que estão recebendo vigabatrin.
O vigabatrin é um antagonista da enzima aminobutirato-aminotransferase e atua aumentando a concentração do ácido gama aminobutírico (GABA), que é um neurotransmissor inibitório importante no sistema nervoso central e em diferentes locais da retina. O GABA é um neurotransmissor inibitório encontrado especialmente nas camadas mais internas da retina (pós-fotorreceptores). Ocorre nas células horizontais, bipolares e amácrimas da retina 8, 10. As respostas das diferentes células retinianas pode ser avaliada pelo eletrorretinograma (ERG). A onda a reflete a atividade dos fotorreceptores enquanto que a onda b mede a atividade de várias células da retina interna incluindo as células de Muller, bipolares, horizontais e amácrimas. Os potenciais oscilatórios por sua vez dependem principalmente das células amácrimas, mas também das células ganglionares e bipolares 8, 9.
Em nossos pacientes as alterações na onda b (caso 1) e a redução dos potenciais oscilatórios (caso 2) do eletrorretinograma indicam uma alteração ao nível das células amácrimas e outras células da retina interna como as bipolares, horizontais e de Muller. Estes achados são semelhantes aos encontrados por Krauss e col. 8 e sugerem que estas células são mais susceptíveis por serem mais dependentes de GABA. O fato do potencial visual ter sido normal no caso 1, e do campo central e a acuidade visual estarem normais nos dois casos são consistentes com uma função macular e do nervo óptico normais. A constrição do campo visual pode ser o resultado do bloqueio da transmissão das células bipolares para com as células amácrimas e/ou ganglionares 9. Aparentemente a região periférica do campo visual é mais vulnerável do que a central talvez por ser mais sensível a toxicidade ou pelo fato de existir na região central um maior número de elementos neurais para o processamento da informação visual. Daneshvar et al. 10, por outro lado, sugerem que a alteração observada na onda b seja devido a alteração predominante nas células de Muller que são muito mais numerosas na região central do que na periférica.
O achado de palidez de papila, observado em nossos e em outros pacientes permite supor que as células ganglionares também sejam em última análise afetadas levando à perda da camada de fibras nervosas e consequente palidez do nervo. Essa alteração poderia ser o resultado da lesão inicial nas células bipolares ou decorrente de lesão nas células de Muller, uma vez que essas células são importantes na regulação do ambiente extracelular das células ganglionares e na modulação da atividade neuronal 10. A presença de palidez de papila pode ser mais um elemento a causar confusão diagnóstica sugerindo algum tipo de neuropatia óptica como causa da perda visual. O tipo de alteração campimétrica e as alterações observadas ao eletrorretinograma, no entanto, indicam que a lesão primária ocorre na retina.
As alterações retinianas decorrentes do vigabatrin podem ser dependentes da dose utilizada e talvez a medicação possa ser utilizada em dosagem mais baixa nos indivíduos que a necessitam e que apresentam tal complicação. A decisão de suspender ou não a medicação deve levar em conta a gravidade da alteração visual e a necessidade da medicação que pode ser extremamente eficaz no controle de certas condições neurológicas. É fundamental, portanto, que os pacientes que necessitam do uso de vigabatrin sejam acompanhados cuidadosamente com exames periódicos do campo visual central e periférico, sendo recomendados um exame inicial e controles periódicos após o início da medicação 10.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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2. Butler WH. The neuropathogy of vigabatrin. Epilepsia 1989;30 (suppl3):S15-S17.
3. Elke T, Talbot JF, Lawden MC. Severe persistent visual field constriction associated with vigabatrin. Br Med J 1997;314:180-1.
4. Wilson EA, Brodie MJ. Severe persistent visual field constriction associated with vigabatrin . Br Med J 1997;314:1693.
5. Wong IC, Mawer GE, Sander JW. Severe persistent visual field constriction associated with vigabatrin . Br Med J 1997;314:1693-4.
6. Blackwell N, Hayllar J, Kelly G. Severe persistent visual field constriction assocaited with vigabatrin . Br Med J 1997;314:1694.
7. Harding GF. Severe persistent visual field constriction associated with vigabatrin . Br Med J 1997;314:1694.
8. Krauss GL, Johnson M A, Miller NR. Vigabatrin-associated retinal cone system dysfunction. Electroretinogram and ophthalmologic findings. Neurology 1998;50:614-8.
9. Ruether K, Pung T, Kellner U, Schmitz B, Hartmann C, Seelliger M. Eletrophysiologic evaluation of a patient with peripheral visual field contraction associated with vigabatrin. Arch Ophthalmol 1998;116:817-9.
10. Daneshvar H, Racette L, Coupland SG, Kertes PJ, Guberman A, Zackon D. Symptomatic and asymptomatic visual loss in patients taking vigabatrin. Ophthalmology 1999;106:1792-8.
Trabalho apresentado no XXX Congresso Brasileiro de Oftalmologia, de 4 a 7 de setembro de 1999, em Recife, Pernambuco.
(1) Professor Livre Docente, Divisão de Clínica Oftalmológica do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da U.S.P.
(2) Médico Assistente - Doutor, Departamento de Neurologia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da U.S.P.
Endereço para correspondência: Mário L. R. Monteiro - Av. Angélica 1757 cj. 61 - São Paulo (SP) CEP 01227-200 E-mail: [email protected]