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Editorial

Coleção fluídica na interface do LASIK causada por glaucoma secundário à ceratouveíte herpética: relato de caso

LASIK interface fluid accumulation caused by glaucoma associated with herpetic keratouveitis: case report

Eliane Mayumi Nakano1; Márcio Kuchembuck; Kozo Nakano1; Marivaldo Oliveira1; Lenio Souza Alvarenga3; Waldir Portellinha1

DOI: 10.1590/S0004-27492007000100032

RESUMO

A infecção por Herpes simplex vírus (HSV) é causa freqüente de inflamação intra-ocular ou uveíte anterior. A hipertensão ocular é característica comumente observada nas ceratouveítes herpéticas. Neste relato descrevemos o acúmulo de fluido e descolamento do "flap" corneano da ceratomileusis, no pós-operatório tardio de LASIK (28 meses), associado a quadro hipertensivo ocular secundário a ceratouveíte herpética. Este achado corrobora a suposição que a cicatrização corneana após LASIK seja apenas parcial e o espaço virtual produzido pela ceratomileuisis permaneça indefinidamente. Condições de aumento excessivo da pressão intra-ocular podem causar edema corneano com acúmulo de fluido da interface.

Descritores: Herpes simples; Uveíte; Glaucoma; Ceratomileuse assistida por excimer laser in situ; Complicações pós-operatórias

ABSTRACT

Herpes simplex virus infection is a frequent cause of intraocular inflammation or anterior uveitis. Ocular hypertension is a common feature in herpetic keratouveitis. We describe a fluid accumulation and flap displacement in late postoperative period (28 months) of LASIK associated with ocular hypertension caused by herpetic keratouveitis. This finding supports the theory that flap attachment after LASIK is only partial and the virtual space remains indefinitely. The presence of ocular hypertension may lead to corneal edema and fluid accumulation in the interface.

Keywords: Herpes simplex; Uveitis; Glaucoma; Keratomileusis, laser in situ; Postoperative complications


 

 

INTRODUÇÃO

Descrições na literatura apontam que a infecção por Herpes simplex vírus (HSV) é a causa mais freqüentemente associada a inflamação intra-ocular ou uveíte anterior em outros países(1-3). Acredita-se que o HSV tipo 1 seja responsável pelo aparecimento do quadro de iridociclite, enquanto o HSV tipo 2 é observado nos casos de necrose aguda de retina (ARN)(4). Entretanto, o diagnóstico de uveíte herpética por vezes não é feito pelo fato de a ceratite poder não acompanhar o quadro de uveíte anterior e atrofia setorial de íris(1).

O quadro clínico da ceratouveíte, desta forma, conta com ceratite dendrítica, infiltrados corneanos em estroma profundo, precipitados ceráticos não granulomatosos e reação de câmara anterior. Sinéquias, hifema e hipópio também podem estar presentes(5-6).

A uveíte herpética se caracteriza pela recorrência, tendo sido este fato postulado como característica patognomônica da doença(7). Acredita-se que fatores desencadeadores das recorrências estejam associados a estados imunológicos do portador, embora já tenham sido descrito casos de recorrência da ceratouveíte após iridotomia com argon e yag laser(8-9).

O aumento da pressão intra-ocular é outro ponto importante e comumente observado nas ceratouveítes herpéticas, sendo estas então, a causa mais comum de glaucoma secundário a uveítes(5,10-14).

Durante o acompanhamento pós-operatório de um caso de ceratomileuse assistida por excimer laser in situ (LASIK), notou-se uma inflamação ocular com acúmulo de fluido na interface e descolamento do "flap" da ceratomileusis. O paciente referia episódio prévio de ceratouveíte herpética.

 

RELATO DO CASO

Paciente do sexo masculino, 46 anos, apresentava exame biomicroscópico normal em ambos os olhos, com pressão intra-ocular (Goldman) de 12 mmHg em ambos os olhos. Referia episódio prévio de ceratite herpética havia quatro anos, tendo sido tratado com aciclovir tópico sem intercorrências. Apresentava refração pré-operatória: OD: +2,75DE= -0,75DC a 95 e OE: + 4,00DE. Foi submetido a LASIK em ambos os olhos sem intercorrências. No pós-operatório apresentou visão sem correção de 20/20 em ambos os olhos.

Após dois anos e quatro meses da cirurgia, o paciente retornou com história de dor ocular, hiperemia intensa, fotofobia no olho direito por dois dias. Ao exame apresentava OD com acuidade (com a melhor correção) de 20/200. À biomicroscopia se evidenciavam hiperemia ciliar, reação de câmara anterior, precipitados ceráticos (Figura 1). Ainda, edema intenso de córnea e delaminação do estroma corneano no nível da ceratomileusis, sendo possível observar acúmulo de fluido na interface (Figura 2).

 

 

 

 

A medida da pressão intra-ocular através de digitopressão acusava um aumento importante. A medida de tonometria de aplanação foi ignorada uma vez que se mostrava falsamente baixa decorrente ao edema de córnea. Considerou-se o quadro clínico compatível com o diagnóstico de ceratouveíte herpética, instituindo-se o tratamento com aciclovir oral 2 g ao dia, prednisona 60 mg oral ao dia, colírios tópicos de acetato de prednisolona 1%, tropicamida 1% a cada 6 horas e maleato de timolol 0,5% a cada 12 horas. O corticosteróide oral e tópico foi diminuído gradualmente. Após três semanas o paciente apresentava Acuidade visual de 20/20 com correção no olho acometido, PIO de 12 mmHg, e sem alterações à biomicroscopia.

 

DISCUSSÃO

As complicações pós-operatórias não-refracionais do LASIK usualmente estão relacionadas à interface. A presença desta no pós-operatório cria um microambiente que pode propiciar a proliferação de grupos especiais de bactérias (e.g. micobactérias atípicas)(15). O seqüestro de substâncias tóxicas nesta região pode levar à inflamação pós-operatória (e.g. ceratite lamelar difusa, reação a corpo estranho)(16) e comprometimento da visão.

Exames de microscopia confocal mostram alterações da morfologia e arquitetura intercelular na interface do flap, o que sugere que a ceratomileusis na cirurgia de LASIK produz um espaço virtual permanente a esta profundidade do estroma corneano(17). Tal fato também foi evidenciado por relatos de levantamento do flap da ceratomileusis após 18 meses da cirurgia para reaplicação do excimer laser(18). Desta forma, o espaço virtual da interface pode ser distendido durante a formação do edema de córnea.

A presença indefinida da interface como uma área de fragilidade corneana tem sido citada como um dos fatores a serem considerados na escolha do tratamento refrativo corneano a laser. A área de fragilidade no estroma levaria a manifestações diferentes das doenças corneanas, especialmente o acúmulo de fluido na interface. É importante reconhecer estas manifestações atípicas para se fazer o correto diagnóstico e tratamento. O deslocamento tardio de flap durante trauma acidental(19-21) ou mesmo cirúrgico(22) também é uma preocupação decorrente desta área de fragilidade corneana.

Relatos de acúmulo de fluido e descolamento do flap foram previamente descritos na literatura(23-25). O mecanismo proposto para tal condição é o aumento da pressão intra-ocular causando o edema do tecido corneano, culminando na coleção líquida na interface(23,26). Nestes casos é bem estabelecido que a pressão intra-ocular medida por aplanação sobre a região do flap estará subestimada e isso deve ser considerado no manejo do paciente (e.g. utilizar avaliação bidigital ou tonopen na periferia da córnea).

A possibilidade do trauma cirúrgico da cirurgia refrativa servir como estímulo à reativação de infecção latente por herpes vírus já foi comprovada em modelos animais(27). Esta associação, entretanto, ainda não foi estudada em coortes prospectivas o que dificulta a identificação e quantificação deste possível risco. Apesar de relato na literatura sugerindo uma correlação entre a cirurgia refrativa e a reativação da infecção herpética dois anos(28) após o procedimento, consideramos que a alta latência torna improvável uma associação direta.

No caso descrito identificamos que sob condições de aumento excessivo da pressão intra-ocular e conseqüente edema corneano ocorreu acúmulo de fluido na interface do LASIK, 28 meses após a confecção do flap. No nosso paciente houve regressão total sem seqüela visual após o controle da hipertensão ocular.

 

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Endereço para correspondência:
Eliane Mayumi Nakano
Rua Vergueiro, 2087 - Cj. 1602 - São Paulo (SP)
CEP 04101-000
E-mail: [email protected]

Recebido para publicação em 04.04.2005
Última versão recebida em 07.04.2006
Aprovação em 02.05.2006

 

 

Trabalho realizado no Excimer Laser do Hospital Santa Cruz - São Paulo (SP) - Brasil.
Nota Editorial: Depois de concluída a análise do artigo sob sigilo editorial e com a anuência do Dr. Marco Cezar Helena sobre a divulgação de seu nome como revisor, agradecemos sua participação neste processo.


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