Paulo Hélio Monzillo1; Victor Marçal Saab2; Gustavo Guimarães Protti3; Wilson Luiz Sanvito4
DOI: 10.1590/S0004-27492006000500022
RESUMO
A enxaqueca oftalmoplégica (EO) é entidade clínica extremamente rara e de etiologia controversa, caracterizada por crises recorrentes de cefaléia unilateral fixa (sem alternância de lado), associadas a paresia de um ou mais nervos oculomotores (III, IV ou VI) homolaterais à dor. Descreve-se o caso de uma paciente com diagnóstico de enxaqueca oftalmoplégica de acordo com os critérios estabelecidos pela International Headache Society (IHS-2004), com aspectos clínicos e idade de início dos sintomas, não usuais. Ao contrário das descrições da literatura, a primeira crise ocorreu na idade adulta. Houve troca de lado num dos episódios e no último evento ocorreu apenas a manifestação ocular sem cefaléia. Em virtude do diagnóstico de enxaqueca oftalmoplégica ser sempre de exclusão, abordamos outras causas de oftalmoplegia dolorosa a serem afastadas por meio de investigação apropriada.
Descritores: Enxaqueca; Oftalmoplegia; Imagem por ressonância magnética; Cefaléia; Transtornos da motilidade ocular; Relatos de casos
ABSTRACT
Ophthalmoplegic migraine is a rare syndrome in which episodic fixed unilateral headaches are associated with ipsilateral ophthalmoplegia. Its physiopathology remains obscure. We describe a case in a patient with ophthalmoplegic migraine diagnosed according to the International Headache Society (IH-2004) criteria, who showed an unusual clinical presentation. The first ophthalmoplegic migraine episode occurred in adult life. Pain side changed in one episode. Oculomotor abnormalities were painless during the last crisis. Since diagnosis is made by exclusion, differential diagnosis and need for etiologic investigation are discussed.
Keywords: Migraine; Opthalmoplegia; Magnetic resonance imaging; Headache; Ocular motility disorders; Case reports
INTRODUÇÃO
A enxaqueca oftalmoplégica (EO) foi inicialmente descrita por Gubler em 1860, mas foi Charcot quem introduziu o termo "migraine ophtalmoplégique" em 1890, ao relatar o 20º caso de EO à época. Até 1974 haviam sido relatados somente 116 casos de EO. Destes, uma minoria havia sido investigada pela angiografia cerebral(1).
Na classificação da International Headache Society (IHS) em 1988, a EO foi considerada variante da enxaqueca(2). No entanto, sempre se indagou sua real relação (clínica e fisiopatológica) com esta forma de cefaléia primária. De fato, as características clínicas das crises de EO (que não satisfazem os critérios de enxaqueca) e o comprometimento oculomotor por vezes desvinculado da crise álgica por um período de dias vêm deixando a EO cada vez mais distante de qualquer forma clínica de enxaqueca(3).
O emprego da ressonância magnética (RM) como método investigativo acabou por separar definitivamente as duas entidades, uma vez que alguns pacientes com EO apresentam captação anormal de contraste paramagnético na região cisternal do nervo oculomotor comprometido. Por esta razão a IHS-2004 incluiu a EO no grupo 13 de sua classificação: "Neuralgias cranianas e Causas centrais de dor facial"(3).
A EO é definida como segue, segundo os critérios da IHS-2004:
Descrição
Crises recorrentes de cefaléia com características de enxaqueca associadas a paresia de um ou mais nervos oculares (comumente o III nervo), na ausência de outra lesão intracraniana demonstrável, exceto as alterações à RM do próprio nervo afetado.
Critérios diagnósticos
A. Pelo menos duas crises satisfazendo o critério B e C.
B. Cefaléia semelhante à da enxaqueca, acompanhada ou seguida, dentro de quatro dias do seu início, por paresia de um ou mais dentre os III, IV e/ou VI nervos cranianos.
C. Exclusão, por investigação apropriada, de lesões parasselares, na fissura orbital e na fossa posterior.
COMENTÁRIOS
Esta entidade clínica é muito rara. É improvável que a enxaqueca oftalmoplégica seja uma variante da enxaqueca, uma vez que a cefaléia freqüentemente dura uma ou mais semanas, havendo ainda um período latente de quatro dias entre o início da cefaléia e o início da oftalmoplegia. Além disso, em alguns casos a RM contrastada pelo gadolínio realça a porção cisternal do nervo afetado, o que sugere neuropatia desmielinizante recorrente(3).
RELATO DO CASO
Mulher, 34 anos, branca, doméstica, natural e procedente de São Paulo. Há sete anos iniciou-se quadro de cefaléia hemicraniana latejante esquerda fixa, de início súbito, forte intensidade, que se irradiava à região ocular deste mesmo lado. A crise durou 15 dias e foi acompanhada de náusea, vômito, fotofobia e fonofobia. A paciente não tinha lembrança de qualquer fator desencadeante. A intensidade da dor era amenizada substancialmente pelo naproxeno sódico em dose oral única diária de 550 mg. Cerca de dois dias após o término da crise apareceu quadro ocular caracterizado por diplopia horizontal, secundária ao comprometimento dos nervos III e VI, ipsilateral à manifestação dolorosa prévia. A oftalmoplegia perdurou por cerca de duas semanas, com recuperação completa do déficit.
A paciente foi submetida na ocasião a investigação complementar com exames laboratoriais, tomografia computadorizada (TC) e RM de crânio, exame do líquor cefaloraquidiano (LCR) e angiografia cerebral digital dos quatro vasos, sem evidência de anormalidade.
No período de sete anos ocorreram mais 11 episódios sempre à esquerda, todos com características clínicas idênticas. Excetua-se um deles que, embora semelhante, ocorreu no lado direito. Os intervalos assintomáticos entre uma crise e outra foram em média de seis meses. Os períodos de dor tiveram duração média de dois a 15 dias e a oftalmoplegia de sete a 240 dias, todos com recuperação completa. Em nenhum período do seguimento houve qualquer queixa de alteração da acuidade visual.
Inicialmente acreditamos estar diante de um quadro de oftalmoplegia dolorosa ou síndrome de Tolosa-Hunt (STH). Tal síndrome é descrita como ocorrência de dor orbitária episódica associada a paralisia de um ou mais nervos oculomotores. Os sintomas podem desaparecer espontaneamente ou recorrer ao longo do tempo. Semelhantemente à EO, a paresia do(s) nervo(s) craniano(s) ocorre concomitante ao quadro álgico ou a sucede num prazo de até duas semanas. Alguns pacientes com STH podem apresentar alterações na RM de crânio na região do seio cavernoso. A dor e a paresia ocular desaparecem dentro de 72 horas após tratamento adequado com corticoesteróides. Para excluir-se tal possibilidade, na vigência do segundo episódio realizou-se teste terapêutico com prednisona oral na dose de 1 mg/kg/dia por quatro dias sem que houvesse qualquer tipo de melhora clínica. Sugeriu-se tratamento profilático para enxaqueca, recusado pela paciente.
Transcorridos sete anos do evento inicial a paciente apresentou quadro de diplopia horizontal devida a paresia do nervo abducente esquerdo, não precedida nem acompanhada por cefaléia ou dor ocular. Na ocasião o restante do exame neurológico foi normal, assim como a avaliação oftalmológica que nada mais constatou além do comprometimento do referido nervo. O exame pela TC tampouco revelou anormalidades. Eletrocardiograma, lactato sérico, glicemia e prova de falcização foram realizados naquele episódio para excluir doença mitocondrial (Kearns-Sayre), neuropatia diabética e anemia falciforme, respectivamente.
A paresia indolor do nervo abducente que se desenvolveu durante o último episódio de EO persiste após dois anos de seguimento clínico.
DISCUSSÃO
A EO é uma entidade rara, de predomínio no sexo masculino, cuja manifestação inicial geralmente ocorre na infância(1,4-5).
Descrevemos um caso de EO numa mulher, cuja primeira manifestação clínica ocorreu aos 26 anos de idade. Exceto pelo último episódio, no qual não houve concomitância do quadro doloroso, todos os demais sintomas satisfaziam os critérios estabelecidos pela IHS-2004. Os nervos oculomotor (III) e abducente (VI) foram os mais freqüentemente comprometidos, evidenciando combinação não usual(6). Na maioria dos casos de EO descritos na literatura o nervo oculomotor é o mais freqüentemente acometido e de forma isolada(1,4-5). A paresia do nervo abducente, isolada ou não, é relatada em apenas 10% dos casos(7). O comprometimento do nervo troclear é excepcional(8).
Chamou-nos também a atenção, no caso ora relatado, a alternância dos sintomas, com troca de lado num dos episódios. Na literatura consultada não encontramos descrição de quadro semelhante.
Não é usual a persistência de déficit na motricidade ocular após episódios recorrentes de EO(6). Alguns pacientes podem contudo apresentá-lo ao longo do seguimento clínico(1,4).
A etiologia da EO permanece ainda uma questão em aberto. Diferentemente da classificação da IHS-1988, que considerava a EO uma forma de cefaléia primária (grupo das enxaquecas)(2). Atualmente ela se inclui num grupo heterogêneo de entidades, muitas delas envolvendo substrato orgânico IHS-2004).
É muito provável que na próxima revisão desta classificação, a EO não mais figure na sinonímia de "enxaqueca", uma vez que as características clínicas das crises não satisfazem completamente os critérios diagnósticos estabelecidos para esta forma de cefaléia primária.
Atualmente o principal diagnóstico diferencial da EO é a STH. Ambas podem apresentar alterações inespecíficas ao exame de RM de crânio embora em diferentes topografias. Alterações de imagem à semelhança das encontradas na EO estão descritas em outras enfermidades, tais como: certas infecções virais, processos desmielinizantes (síndrome de Miller-Fischer), paralisia de Bell, neuropatia sensorial do nervo trigêmeo e polineuropatia inflamatória desmielinizante crônica (PIDC) quando há envolvimento de nervos oculomotores(9-10).
As alterações da captação de contraste paramagnético na região cisternal do nervo comprometido durante o episódio de EO não são observadas em todos os pacientes(9). Sua ausência, portanto, não constitui critério excludente para o diagnóstico desta entidade.
A revisão de Carlow reune casos de necropsia de pacientes com EO cuja descrição histopatológica em três deles é compatível com hipertrofia e formação cicatricial no nervo comprometido, conseqüentes a episódios repetidos de desmielinização e remielinização(11). Estes achados concordam com as alterações de imagem observadas no exame de RM.
Com base nestes dados, muitos autores consideram atualmente que a EO esteja mais relacionada com uma forma de neuropatia inflamatória ou desmielinizante recorrente que compromete os nervos oculomotores(1,5,12).
A EO é uma entidade rara com manifestação inicial na idade adulta, constituindo sempre diagnóstico de exclusão. A troca de lateralidade tanto dos sintomas álgicos como das manifestações oculomotoras pode ocorrer na EO, conforme descrito no caso acima.
REFERÊNCIAS
1. Daroff RB. Random comments: neurologists and neuro-ophthalmology; the "ocular motor" system; and update on ophthalmoplegic migraine. Semin Neurol. 2000;20(1):145-9.
2. Classification and diagnostic criteria for headache disorders, cranial neuralgias and facial pain. Headache Classification Committee of the International Headache Society. Cephalalgia. 1988;8 Suppl 7:1-96.
3. Headache Classification Subcommittee of the International Headache Society. The International Classification of Headache Disorders: 2nd edition. Cephalalgia. 2004;24 Suppl 1:9-160.
4. Walsh FB, Hoyt WT. Clinical neuro-ophthalmology. 5th ed. Baltimore: Williams & Wilkins; 1998.
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7. Verhagen WI, Prick MJ, van Dijk Azn R. Onset of ophthalmoplegic migraine with abducens palsy at middle age? Headache. 2003;43(7):798-800.
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9. Mark AS, Casselman J, Brown D, Sanchez J, Kolsky M, Larsen TC 3rd, et al. Ophthalmoplegic migraine: reversible enhancement and thickening of the cisternal segment of the oculomotor nerve on contrast-enhanced MR images. AJNR Am J Neuroradiol. 1998;19(10):1887-91.
10. Arroyo JG, Horton JC. Acute, painful, pupil-involving third nerve palsy in chronic inflammatory demyelinating polyneuropathy. Neurology. 1995;45(4): 846-7. Comment in: Neurology. 1996;47(1):306.
11. Carlow TJ. Oculomotor ophthalmoplegic migraine: is it really migraine? J Neuroophthalmol. 2002;22(3):215-21. Comment in: J Neuroophthalmol. 2003; 23(3):240; author reply 240-1.
12. Van der Dussen DH, Bloem BR, Liauw L, Ferrari MD. Ophthalmoplegic migraine: migrainous or inflammatory? Cephalalgia. 2004;24(4):312-5.
Endereço para correspondência:
Paulo Hélio Monzillo
Av. Albert Einstein, 627 - Sala 1306
São Paulo (SP) CEP 05652-000
E-mail: [email protected]
Recebido para publicação em 01.04.2005
Última versão recebida em 02.03.2006
Aprovação em 09.03.2006
Trabalho realizado na Disciplina de Neurologia, Santa Casa de Misericórdia de São Paulo.