João Arraes1; José Ricardo Diniz2; Paulo Escarião3; Cecília Melo4; Tatiana Arraes5
DOI: 10.1590/S0004-27492006000500009
RESUMO
OBJETIVO: Avaliar os resultados visuais e a freqüência de vítreo-retinopatias e descolamento de retina em pacientes, com e sem fotocoagulação profilática pré-operatória da retina pré-equatorial, submetidos à extração de cristalino translúcido (ECT) para correção de miopia. MÉTODOS: Trinta e cinco pacientes (60 olhos) foram submetidos à extração de cristalino translúcido na Fundação Altino Ventura com tempo mediano de acompanhamento de 20,5 meses, sendo divididos em 3 grupos: Grupo I (22 olhos) submetidos à fotocoagulação da retina periférica 360° pré-operatória; Grupo II (8 olhos) submetidos à fotocoagulação pré-operatória circundando lesões predisponentes e Grupo III (30 olhos) não submetidos à fotocoagulação pré-operatória. Foram avaliados a acuidade visual corrigida (AVL c/c), o equivalente esférico refracional (EE) e a presença de membrana neovascular sub-retiniana (MNVSR), lesões predisponentes e descolamento de retina (DR) pré e pós-operatórios. RESULTADOS: O valor mediano da acuidade visual corrigida AVLc/c melhorou de 0,2 no pré-operatório para 0,5 no pós-operatório e o equivalente esférico refracional EE de -17DE para -1,7DE. Não houve casos de descolamento de retina, mas surgiram áreas de tração vítreo-retiniana em 4 olhos (2 submetidos ao laser 360° e 2 olhos não submetidos ao laser) e 1 caso de membrana neovascular sub-retiniana. CONCLUSÃO: A extração de cristalino translúcido mostrou-se cirurgia eficaz e previsível nas reduções de altas miopias e, ainda, procedimento aparentemente seguro em pacientes com e sem fotocoagulação profilática da retina pré-equatorial. Tempo de acompanhamento maior dos pacientes e o aumento da amostra estudada podem ratificar sua segurança como procedimento refrativo.
Descritores: Miopia; Erros de refração; Cristalino; Fotocoagulação; Descolamento retiniano; Segurança
ABSTRACT
PURPOSE: To evaluate visual results and vitreoretinopathy and retinal detachment frequencies in patients with and without prophylactic pre-equatorial retinal photocoagulation, who underwent clear lens extraction (CLE) to correct myopia. METHODS: Thirty-five patients (60 eyes) that underwent clear lens extraction at the "Fundação Altino Ventura" had median follow-up of 20.5 months. They were classified into 3 groups: Group I that was submitted to preoperative 360° preequatorial retinal photocoagulation; Group II that was submitted to prophylactic photocoagulation around predisposing lesions; and Group III that was not submitted to preoperative retinal photocoagulation. The presence of corrected visual acuity (CVA), refractional spherical equivalent (RSE) and choroidal neovascularization (CNV), predisposing lesions and retinal detachment (RD) was evaluated. RESULTS: Median corrected visual acuity value rose from 0.2 in the preoperative period to 0.5 in the postoperative period and refractional spherical equivalent decreased from -17SD to -1.7SD. There was no retinal detachment, but vitreous retinal traction areas appeared in 4 eyes (2 submitted to 360° laser and 2 not submitted to laser) and 1 case of choroidal neovascularization also occurred. CONCLUSIONS: Clear lens extraction was an effective and predictable surgery to reduce myopias and an apparently safe procedure in patients with and without prophylactic preequatorial retinal photocoagulation. A longer follow-up in a larger group may validate its safety as a refractive surgery.
Keywords: Myopia; Refractive errors; Lens, crystalline; Light coagulation; Retinal detachment; Safety
INTRODUÇÃO
A rápida evolução da cirurgia refrativa fez surgir opções seguras e eficazes, levando ao aumento de sua demanda no mundo atual. A grande expectativa dos pacientes em atingir uma boa visão sem correção óptica gera uma grande responsabilidade profissional e médico-legal para o cirurgião refrativo(1-2).
A miopia está presente em cerca de 20% da população(3). Estes representam a maior parcela dos pacientes que buscam a emetropia através de cirurgias(4). Os míopes apresentam maior freqüência de vítreo-retinopatias(5-7) e, quando submetidos a procedimentos oculares refrativos que violem a câmara anterior, como na extração de cristalino translúcido, a freqüência de descolamento de retina pode chegar a cerca de 7%(8).
Na busca de minimizar esta freqüência, a realização de fotocoagulação com laser de argônio na periferia da retina tem como objetivo promover a formação de adesões coriorretinianas fortes, bloqueando, então, a progressão de um possível descolamento. No entanto, a eficácia deste procedimento em atingir seu objetivo ainda é duvidosa(9).
O objetivo do presente estudo, portanto, foi avaliar os achados clínicos, resultados visuais e a incidência de vítreo-retinopatias e descolamento de retina em pacientes com e sem fotocoagulação profilática pré-operatória da retina pré-equatorial submetidos à extração de cristalino translúcido para correção de miopia.
MÉTODOS
Foi realizado estudo retrospectivo dos pacientes submetidos a cirurgia de extração de cristalino translúcido (ECT) por facoemulsificação na Fundação Altino Ventura entre janeiro de 1998 e dezembro de 2003.
Foram incluídos todos os pacientes submetidos a ECT por cirurgiões "staffs" (4 cirurgiões) para correção de miopia. Foram excluídos aqueles que apresentaram no pré-operatório, retinopatias proliferativas ativas ou cicatriciais, cirurgias intra-oculares prévias ou complicações pós-operatórias como trauma ocular, os que tiveram acompanhamento pós-operatório menor que 6 meses ou não o fizeram apropriadamente e, ainda, os pacientes que necessitaram de uma segunda intervenção cirúrgica após a cirurgia de ECT. Um paciente necessitou de cirurgia de trabeculectomia, 3 anos após a intervenção cirúrgica, indicada pela existência de glaucoma prévio em paciente sem poder aquisitivo para uso correto das medicações (indicação social).
Dos 50 pacientes (86 olhos) submetidos a ECT neste período, 15 pacientes (26 olhos) não chegaram a realizar mapeamento de retina pós-operatório ou o fizeram antes dos 6 meses pós-operatórios. Dos 35 pacientes restantes (60 olhos), a média das idades foi 47,7 anos (21 a 77 anos: DP=12,6 anos). Destes, 43 foram submetidos a facoemulsificação com incisão "clear cornea" de 3,0 mm (LIO dobrável de 5,5 mm) e 17 com incisões tipo túnel escleral de 5,5 mm (LIO de PMMA 5,5 mm). Foram avaliados a presença de complicações intra e pós-operatórias.
Os pacientes foram examinados através de oftalmoscopia binocular indireta (28D), biomicroscopia de fundo e lente de três espelhos por um retinólogo no pré-operatório. Neste momento, ele decidira pela realização ou não da fotocoagulação profilática. Pode-se dividir, então, os pacientes em três grupos: Grupo I que realizou fotocoagulação da retina periférica 360° profilática; Grupo II que fez fotocoagulação profilática circundando lesões predisponentes (roturas e buracos retinianos, degeneração lattice e trações vítreo-retinianas) e Grupo III que não a realizou. A fotocoagulação foi realizada com laser de argônio (comprimento de onda de 532 nm) em média 35 dias antes da cirurgia (23 a 69 dias).
Foram analisados, então, as variações da acuidade visual corrigida na tabela de Snellen, e do equivalente esférico pré e pós-operatórios e o surgimento de alterações vítreo-retinianas ou descolamento de retina pós-operatórios influenciados ou não por capsulotomia posterior com Nd:YAG Laser. As alterações vítreo-retinianas avaliadas foram o surgimento de lesões periféricas predisponentes ao descolamento de retina (roturas e buracos retinianos, degeneração lattice e trações vítreo-retinianas) e o surgimento de membrana neovasculares subrretinianas (MNVSR) e epirretinianas (MER) maculares, observadas através de oftalmoscopia binocular indireta (28D), biomicroscopia de fundo e lente de três espelhos. Quando julgado necessário, foi também realizado angiofluoresceinografia. Foi considerado sem degenerações aquele olho sem lesões predisponentes e sem MNVSR/MER maculares.
Foram utilizados os testes t-Student, Wilcoxon, ANOVA e Kruskal-Wallis para análise de possíveis diferenças entre variáveis numéricas e os testes de McNemar e do Qui-quadrado para análise de possíveis diferenças entre variáveis categóricas. O valor de p menor que 0,05 foi utilizado para rejeitar a hipótese de nulidade.
RESULTADOS
A mediana dos valores do tempo de acompanhamento dos 35 pacientes (60 olhos) foi de 20 meses (distância inter-quartil de 27 meses). A média dos diâmetros antero-posteriores (DAP) dos olhos foi 30,30 mm (DP=2,26 mm) com média dos equivalentes esféricos refracionais (EE) pré-operatório de -17 dioptrias esféricas (DE) e pós-operatório -1,7DE (p<0,0001). O valor mediano da acuidade visual corrigida (AVL c/c) pré-operatória foi 0,2 e a pós-operatória foi 0,5 (p<0,0001).
A mediana dos valores da lente intra-ocular (LIO) programada pela biometria foi de 3,5 dioptrias (distância inter-quartil de 8,1D). Entre os 60 olhos estudados, 22 foram submetidos a capsulotomia posterior com Nd:YAG laser pós-operatório e 30 a fotocoagulação pré-operatória profilática da retina periférica. A capsulotomia posterior foi realizada de acordo com o bom senso de cada cirurgião (acuidade visual e grau de opacificação), sem seguir critérios exatos previamente definidos. Entre os grupos, a mediana dos valores dos tempos de acompanhamento e a freqüência de olhos submetidos a capsulotomia não foram semelhantes. A média dos equivalentes esféricos pré-operatórios também apresentou diferença significante, no entanto, este é maior do que -15DE nos três grupos e seus DAP são homogêneos. As demais variáveis dos grupos não diferiram significantemente. As características dos grupos são descritas na tabela 1.
Os achados dos mapeamentos de retina pré e pós-operatório dos grupos estão resumidos na tabela 2.
Não houve intercorrências transoperatórias em nenhuma das cirurgias de ambos os grupos. No pós-operatório, foi observado a presença de opacificação de cápsula posterior significativa com baixa visual nos 22 olhos submetidos a capsulotomia (37%). Houve hipertensão ocular transitória e controlada com medicação em 6 pacientes (10%). Não foi observado casos de descolamento de retina em nenhum dos olhos estudados.
DISCUSSÃO
A extração do cristalino translúcido é considerada eficaz na correção de altas ametropias. Além da melhora da acuidade visual corrigida pós-operatória, outras vantagens como resultados altamente previsíveis, indução mínima de astigmatismo e a impossibilidade do retorno dos altos graus de miopia, tornam este procedimento muito aceitável entre as cirurgias refrativas(10).
Neste estudo, A ECT mostrou-se um procedimento refrativo efetivo e seguro em reduzir as ametropias dos pacientes (-17DE no pré-operatório para -1,7DE no pós-operatório), levando não só a uma melhora das medianas das acuidades visuais corrigidas (0,2 para 0,5), como melhora estética no uso de lentes de óculos mais finas e com menos aberrações. No entanto, questões médico-legais acerca da remoção de uma parte perfeitamente funcional de um olho "são" e reposição por uma artificial com complicações potenciais, existem.
A violação da câmara anterior durante a ECT acelera o processo de degeneração vítrea com indução de descolamento do vítreo posterior. Isto pode levar ao surgimento de lesões retinianas predisponentes ao descolamento de retina com repercussões visuais graves(11).
A fotocoagulação da retina pré-equatorial tem sido implicado como fator protetor no surgimento de vítreo-retinopatias e descolamento de retina, mas sua real eficácia ainda é muito controversa e seu efeito não totalmente inócuo(1,11-12).
Neste estudo, não foi observado descolamento de retina em nenhum dos pacientes dos três grupos. No entanto, houve o surgimento de uma membrana neovascular sub-retiniana em 1 olho (1,7%) e áreas de tração vítreo-retiniana em retina periférica de 4 olhos (6,7%), não existentes no pré-operatório, sendo que 2 olhos tinham sido submetidos a fotocoagulação da retina periférica 360° e os outros 2 não. Não houve, portanto, diferença significante no aparecimento de lesões predisponentes e DR entre o pré e pós-operatório dos grupos que realizaram profilaxia com laser de argônio na retina pré-equatorial daquele que não a realizou.
Fatores que provavelmente contribuíram para não ter havido descolamentos de retina foram: não violação da cápsula posterior em todas as cirurgias(10); todos os procedimentos terem sido realizadas pela técnica de facoemulsificação com implante de LIO(13); média das idades dos pacientes não ser baixa (pacientes jovens, devido a maior aderência vítreo-retiniana, estão mais sujeitos a desenvolvimento de vítreo-retinopatias quando a câmara anterior é violada)(12); e uma boa avaliação pré-operatória da retina periférica(14-16). A mediana dos tempos de acompanhamento dos pacientes (20 meses), relativamente curto se comparado a outras séries, pode ter influenciado na ausência de descolamentos de retina(10,17).
Descolamento de retina, degenerações retinianas periféricas e membrana neovascular sub-retiniana apresentam maior incidência em olhos míopes, sendo proporcional ao grau de ametropia(16). A freqüência de DR é de 1:10.000 pessoas por ano, sendo que em média 40 a 55% são em olhos míopes. Estatisticamente, os míopes têm risco de 2,4% de desenvolverem DR e cerca de 10% apresentam lesões predisponentes(4). Logo os pacientes candidatos a ECT, independente da realização de cirurgia, já poderiam apresentar estas complicações. Portanto, o estudo com pacientes semelhantes submetidos a ECT, divididos em grupos com e sem profilaxia a laser, avaliando-se o surgimento destas alterações, tornou-se imperativo para provar se há real benefício nesta terapia.
Sem dúvida, a continuação do acompanhamento deste pacientes, assim como o aumento do tamanho da amostra pode trazer informações adicionais sobre o efeito da fotocoagulação profilática da retina pré-equatorial em pacientes candidatos a extração do cristalino translúcido.
CONCLUSÃO
A extração de cristalino translúcido mostrou-se uma cirurgia eficaz e previsível nas reduções das altas miopias, contribuindo para um melhor resultado visual e estético. Mostrou-se, ainda, um procedimento aparentemente seguro em pacientes com e sem fotocoagulação profilática da retina pré-equatorial. Um tempo de acompanhamento maior dos pacientes e o aumento da amostra estudada podem ratificar sua segurança como procedimento refrativo.
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Endereço para correspondência:
João Carlos Diniz Arraes
Quadra 206 Sul - Al. 2 - Lote 7 - Edf. Isabela - Apto. 503
Palmas (TO) CEP 77020-514
E-mail: [email protected]
Recebido para publicação em 26.04.2005
Última versão recebida em 02.03.2006
Aprovação em 11.03.2006
Trabalho realizado na Fundação Altino Ventura.