Hamilton Moreira1; Cinara S. de Oliveira4
DOI: 10.1590/S0004-27492000000400012
RESUMO
O transplante de membrana amniótica tem sido utilizado como alternativa para a reconstrução da superfície ocular em substituição ao tecido conjuntival nos casos de doenças cicatriciais da córnea ou conjuntiva. Tem sido descrito na literatura para o tratamento de defeitos epiteliais persistentes, pterígio recidivado, Síndrome de Stevens-Johnson e Penfigóide cicatricial, queimaduras químicas e ceratopatia bolhosa.
Descritores: Membrana amniótica; Transplante de limbo; Ceratoconjuntivite cicatricial; Queimaduras químicas
ABSTRACT
Amniotic membrane transplantation has been used as an alternative for ocular surface reconstruction. Indications for amniotic membrane transplantation include persistent epithelial defects, pterygium, Stevens-Johnson syndrome, ocular cicatricial pemphigoid, chemical burns and pseudo-phakik bullous keratopathy.
Keywords: Amniotic membrane; Chemical burns; Surface reconstruction
INTRODUÇÃO
O transplante de membrana amniótica foi descrito pela primeira vez em 1940 por De Rotth, na reparação de simbléfaro e defeitos conjuntivais 1. Em 1946, Sorsby et alli. relataram bons resultados no tratamento de queimadura química aguda 2. Nos anos 90, várias publicações sobre o transplante da membrana amniótica foram reintroduzidos na Oftalmologia. Tem sido utilizada para a reconstrução da superfície ocular em substituição ao tecido conjuntival nos casos de doenças cicatriciais da córnea e conjuntiva.
O seu emprego tem se estendido a outras áreas da medicina como na reparação de queimaduras de pele, onfalocele e na prevenção de adesão tecidual em cirurgias da cabeça, abdômen, pélvis, vagina e de laringe 3.
A membrana amniótica, é composta por uma camada de epitélio cúbico simples e uma membrana basal espessa, formada basicamente de colágeno tipo IV e laminina e uma matriz estromal avascular 3, 4.
A membrana amniótica apresenta várias propriedades como efeito antiadesivo, antibacteriano, proteção da ferida, redução da dor e reepitelização por facilitar a adesão e migração das células epiteliais basais, prevenir a apoptose e restaurar o fenótipo epitelial 3, 5.
Outra propriedade única da membrana amniótica é a de não induzir a rejeição imunológica após o transplante pelo fato de não expressar os antígenos de histocompatibilidade HLA-A, B ou DR 5.
A superfície ocular normal está coberta pelos epitélios corneano, limbar e conjuntival. Embora cada epitélio tenha suas próprias características, todos colaboram para o sistema de defesa biológica da superfície anterior do olho.3,6,7
A superfície ocular pode ser severamente lesada, como nas queimaduras químicas ou térmicas, Síndrome de Stevens-Johnson, penfigóide cicatricial ocular, cirurgias múltiplas ou crioterapias em regiões limbares e algumas ceratopatias induzidas por lente de contato 3, 6. Nestas doenças além do acometimento corneano pode existir envolvimento da conjuntiva e do limbo, levando a reepitelização corneana patológica que pode gerar uma verdadeira "conjuntivalização" corneana, com ceratinização e neovascularização, defeitos epiteliais persistentes, úlceras tróficas, necrose corneana e até perfuração.3,8 A lesão das células conjuntivais leva à deficiência de produção de muco, pela destruição das células caliciformes, e à persistência de inflamação subconjuntival, com severo olho seco e fibrose do tecido subconjuntival 3, 8-10.
OBTENÇÃO E PREPARAÇÃO DA MEMBRANA AMNIÓTICA
- Obtenção da placenta no centro cirúrgico obstétrico, após testes sorológicos da parturiente de HIV, Vírus da hepatite B e C e sífilis
- Lavagem com soro fisiológico 0,9% em ambiente estéril
- Separar o âmnio do córion (Figura 1).
- Estender o âmnio sobre um filtro de nitrocelulose estéril com a face epitelial para cima.
- Lavagem da membrana e do filtro com solução tampão fosfato contendo 1000U/ml de penicilina, 20mcg/ml de estreptomicina e 2,5 mcg/ml de anfotericina B, cortados em fragmentos de aproximadamente 10x10 cm.
- Colocar cada fragmento em recipiente estéril contendo glicerol e meio de preservação de córnea na proporção de 1:1 e congelados a -80ºC.
- Tempo máximo de utilização da membrana após congelar - 4meses.
- Pode também ser utilizada fresca, conservada em geladeira a -4ºC, por até 24 horas.
APLICAÇÕES CLÍNICAS
1. Defeitos Epiteliais Persistentes
Os defeitos epiteliais persistentes podem ser causados por insultos exógenos como infecções, trauma, desepitelização cirúrgica ou queimaduras e podem ser agravados por condições exógenas como exposição paralítica ou neurotrófica ou ceratomalácia. Quando associados com inflamação excessiva podem progredir para úlcera corneana estéril persistente. A melhor indicação do transplante de membrana amniótica está nos casos onde o limbo é normal, e existe um defeito epitelial corneano persistente podendo ser uma alternativa aos casos refratários ao tratamento convencional, antes de se considerar o uso de retalhos conjuntivais ou tarsorrafia 11.
A sutura da membrana amniótica deve ser feita recobrindo pouco mais que a área afetada. O limbo normal garante a fonte de novas células epiteliais. A membrana amniótica em posição facilita a adesão das novas células epiteliais, que recobrirão a área doente 11. Aconselha-se a adaptação de lentes de contato terapêuticas para abreviar a evolução da doença, e diminuir o desconforto da presença da membrana na superfície corneana.
2. Queimaduras Químicas
Nas queimaduras da superfície ocular as células limbares são destruídas, impossibilitando uma estrutura do epitélio corneano normal. É comum a presença de epiteliopatia pontilhada refratária ao tratamento com lubrificantes ou oclusão dos pontos lacrimais. Severo dano nas células conjuntivais causa deficiência de muco e persistente inflamação subconjuntival levando a um olho seco severo e fibrose do tecido subconjuntival, o que comumente leva à neovascularização corneana (Figura 2).
Embora o enxerto de conjuntiva seja o substituto mais adequado, sua disponibilidade é limitada e às vezes insuficiente. A reconstituição da conjuntiva pode ser feita substituindo-a por mucosa bucal, mucosa nasal ou membrana amniótica humana 4. Entretanto o resultado estético com mucosa bucal ou nasal é inferior àquele obtido com enxerto de conjuntiva ou de membrana amniótica, além de ter disponibilidade limitada e promover maior risco de infecção 4.
A associação de transplante de membrana amniótica e de conjuntiva limbar do olho contralateral ou de doador HLA compatível, realizado cerca de um mês após queimadura, parece ser a melhor alternativa para o manejo de queimadura química severa.
3. Stevens-johnson e Penfigóide Cicatricial
São doenças de origem desconhecida que geralmente resultam em cegueira bilateral mesmo com a terapia imunossupressora. Olho seco severo, falta das células limbares tronco, triquíase e persistente inflamação da superfície ocular contra-indicam a ceratoplastia penetrante neste casos. O olho seco severo é uma das maiores contra-indicações de transplante penetrante, porque impede a regeneração do epitélio e resulta em defeitos epiteliais persistentes e severa inflamação resultando em metaplasia escamosa. A melhor opção é também a associação de transplante heterólogo de conjuntiva com membrana amniótica e sistemicamente há necessidade de administrar ciclosporina, tendo sido descritos na literatura vários casos com grande melhora da superfície ocular 12.
4. Pterígio Recidivado
Várias métodos cirúrgicos têm sido utilizados para o tratamento do pterígio recidivado, entre eles: ceratoepitelioplastia, ceratoplastia lamelar e transplante autólogo de limbo. Embora estas técnicas tenham se mostrado úteis, elas não suprimem a fibrose subconjuntival, portanto são inadequadas para os caso de severa fibrose associadas a simbléfaro 5, 13. Antimetabólitos como 5-fluorouracil e mitomicina têm grande efeito antifibrótico, entretanto, indicações específicas e regime de tratamento não estão bem estabelecidas. A membrana amniótica está indicada associada ao transplante de conjuntiva autólogo para os casos de pterígio recidivado associados com simbléfaro. A literatura mostra que esta técnica é efetiva para restaurar a motilidade ocular e suprime a recidiva de fibrose subconjuntival. A técnica cirúrgica necessita de ceratectomia superficial e toda fibrose subconjuntival deve ser removida deixando a esclera exposta. A membrana amniótica é colocada sobre a esclera com o epitélio para cima e suturada na esclera com vicryl 9.0. A seguir é realizado o transplante de limbo, que é removida da área superior e transferido para o local da excisão e suturado com nylon 10.0.
5. Ceratopatia Bolhosa
A ceratopatia bolhosa pode ser manejada com o transplante de membrana amniótica em casos com prognóstico visual reservado ou quando o transplante penetrante está contra-indicado. A dor que acompanha alguns pacientes com esta doença pode ser amenizada com o transplante de membrana amniótica, sendo uma boa alternativa para evitar o recobrimento conjuntival total. Os resultados deste procedimento ainda não estão consagrados e portanto devem ser executados com ressalvas.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1. De Roth A. Plastic repair of conjunctival defects with fetal membrane. Arch Ophthalmol 1940;23:522-5.
2. Sorsby A, Haythorne J, Reed H. Amniotic membrane grafts in caustic soda burns. Br J Ophthalmol 1947;31:401-4.
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7. Grayson M. Anatomia. In: Grayson M. Enfermedades de la córnea. St. Louis:C.C. Mosby 1985;9-22.
8. Tseng SCG, Prabhasawat P, Barton K, Gray T, Meller D. Amniotic membrane transplantation with or without limbal allografts for corneal surface reconstruction in patients with limbal stem cell deficiency. Arch Ophthalmol 1998;116:431-41.
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12. Tsubota K, Satake Y, Ohyama M. Surgical reconstruction of the ocular surface in advanced ocular cicatricial pemphigoid and Stevens-Johnson syndrome. Am J Ophthalmol 1996;122:38-52.
13. Prabhasawat P, Barton K, Burkett G, Tseng SCG. Comparison of conjuntival autografts, amniotic membrane grafts, and primary closure for pterygium excision. Ophthalmology 1997;104:974-85.
1 Doutor em Oftalmologia pela Universidade Federal de São Paulo Escola Paulista de Medicina. Professor adjunto da Universidade Federal do Paraná e professor assistente da Faculdade Evangélica de Medicina do Paraná.
2 Médica do corpo clínico do Hospital de Olhos do Paraná.