Laura Martins C. Duprat Cardoso1; Leandro Cabral Zacharias2; Mário Luiz Ribeiro Monteiro3
DOI: 10.1590/S0004-27492006000400026
RESUMO
Descrevemos uma paciente de 9 anos, sexo feminino, com perda visual bilateral grave tratada com corticóide por via oral apresentando melhora em apenas um olho. Nove anos depois apresentou recidiva que inicialmente respondeu à pulsoterapia corticóide mas foi seguida de perda progressiva e completa da visão após a redução do tratamento. Novas tentativas terapêuticas não melhoraram a visão. Avaliação clínico-laboratorial não revelou doença sistêmica, mas apresentava anticorpos antinucleares (1/640), anti-Ro e anti-La positivos. Neuropatia óptica auto-imune é uma afecção rara, que simula neurite óptica idiopática e se caracteriza por perda visual aguda, sem doença sistêmica, mas com evidências laboratoriais de doença auto-imune, em especial o FAN positivo. Biópsia de pele freqüentemente mostra evidências de vasculite. Esta condição deve ser tratada agressivamente, com corticóide e imunossupressores, uma vez que o acometimento visual geralmente é mais grave do que o da neurite óptica idiopática/desmielinizante e pode ser irreversível.
Descritores: Doenças do nervo óptico; Auto-imunidade; Neurite óptica; Doenças do colágeno
ABSTRACT
We report on a 9-year-old female patient who had bilateral severe visual loss and was treated with oral corticosteroids. Visual improvement occurred in one eye. Nine years later she presented relapse of visual loss in her only seeing eye. Pulse corticosteroid therapy resulted in dramatic visual improvement followed, however, by progressive and complete visual loss as soon as the corticosteroid was tapered. Repeat treatment did not result in visual improvement. Clinical and laboratory investigation failed to find a systemic disease but the patient had positive antinuclear (1/640), anti-Ro and anti-La antibodies. Autoimmune optic neuropathy is a rare condition that may mimic an idiopathic optic neuritis and is characterized by acute visual loss, without systemic disease but with laboratory evidence of an autoimmune disorder, usually a positive ANA. A skin biopsy usually shows evidence of vasculitis. This condition should be treated aggressively, with corticosteroids and immunosuppressant, since the visual involvement is usually worse than that of idiopathic/desmyelinating optic neuritis.
Keywords: Optic nerve diseases; Autoimmunity; Optic neuritis; Collagen diseases
INTRODUÇÃO
Neurite óptica é uma afecção relativamente freqüente que se caracteriza por perda visual devido à inflamação do nervo óptico. Pode ser idiopática(1), associada à esclerose múltipla, causada por infecções virais, por sífilis ou associada a outras afecções como lúpus eritematoso sistêmico(2-5), outras doenças do colágeno(6-13), sarcoidose e doença de Lyme(14-15).
Embora a fisiopatogenia da neurite idiopática ou relacionada à esclerose múltipla provavelmente envolva um mecanismo auto-imune, na maioria destes casos não existe evidência clara de um distúrbio imunológico sistêmico. Dutton et al.(16), Kupersmith et al.(17), e Riedel et al.(18), no entanto, descreveram uma condição na qual o acometimento do nervo óptico se mostra associado a alterações laboratoriais indicativas de um distúrbio auto-imune. Esta entidade foi denominada de neuropatia óptica auto-imune e apresenta características clínicas que a diferenciam da neurite óptica idiopática ou desmielinizante(17-18).
O objetivo deste trabalho é o de documentar uma criança com neuropatia óptica auto-imune, discutir seu diagnóstico diferencial e chamar a atenção para a gravidade potencial desta afecção.
RELATO DO CASO
Uma menina de nove anos apresentou em 1992, baixa da acuidade visual (AV) que progrediu em dois dias, acometendo primeiramente o olho esquerdo (OE), e em seguida o olho direito (OD). Foi diagnosticada "neurite" e introduzido tratamento com prednisona por via oral. Segundo a mãe, houve melhora parcial da visão apenas no OD.
Em setembro de 2001, compareceu pela primeira vez em nosso serviço com queixa de piora visual em OD há uma semana, que progrediu ao longo de um dia até perder quase completamente a visão. Negava dor à movimentação ocular ou sintomas sistêmicos. A AV era de percepção luminosa no OD e ausência de percepção luminosa no OE. Apresentava atrofia óptica à esquerda e disco óptico de limites nítidos e coloração normal à direita. O restante do exame neurológico era normal.
Foram realizadas tomografia computadorizada (TC) e imagem por ressonância magnética (IRM) de crânio e órbitas que evidenciaram apenas redução do calibre do nervo óptico esquerdo. O exame do líquido cefalorraquidiano mostrou pressão normal, com 5 células/mm3 (90% de linfócitos, 9% de monócitos e 1% de neutrófilos) e níveis elevados de gamaglobulinas. A eletroforese de proteína no soro também mostrou aumento dos níveis de gamaglobulinas e a velocidade de hemossedimentação se encontrava em 26 mm. Estudos imunológicos revelaram fator anti-núcleo (FAN) positivo (1/640), padrão pontilhado fino, anticorpos anti-Ro e anti-La positivos. A pesquisa do anticorpo anti-DNA nativo e do fator reumatóide foram negativos.
A paciente foi submetida a pulsoterapia com metilprednisolona 1 g/dia por três dias, seguido de prednisona, via oral, 1 mg/kg/dia. No terceiro dia de internação a visão no OD era de conta dedos a 30 cm, tendo alta com prednisona oral (1 mg/kg/dia). Um mês depois, a AV era de 20/20 no OD, sendo iniciada a diminuição gradativa da prednisona. A AV permaneceu inalterada no OE.
Um mês depois, no entanto, a paciente apresentou perda visual no OD na vigência de 10 mg/dia de prednisona. A AV na época era de 0,4 e no FO observava-se discreta palidez do disco no OD. Foi realizado novo tratamento com metilprednisolona 1 g/dia por três dias, seguido de prednisona por via oral 1 mg/kg/dia. Nova IRM mostrou apenas as diferenças de calibres dos nervos ópticos anteriormente observadas. Apesar deste tratamento, apresentou piora progressiva da visão associada à atrofia do nervo óptico à direita, permanecendo com visão de movimento de mãos desde então.
A paciente foi submetida à extensa avaliação reumatológica. Não existem dados clínicos e laboratoriais que permitam o diagnóstico de lúpus eritematoso sistêmico (LES) ou outras colagenoses, embora haja a possibilidade clínica do desenvolvimento de LES e síndrome de Sjögren.
DISCUSSÃO
O termo neurite óptica auto-imune foi utilizado pela primeira vez por Dutton et al.(16). Estes autores descreveram 3 mulheres com quadro de neurite óptica retrobulbar associada a evidências sorológicas de um distúrbio auto-imune. As pacientes acometidas apresentavam alterações laboratoriais (fator anti-nuclear positivo), na ausência de manifestações clínicas de doença sistêmica. Em 1988, Kupersmith et al.(17) reuniram 14 casos (incluindo aqueles descritos por Dutton et al.) e definiram melhor uma afecção que chamaram de neuropatia óptica auto-imune e que se caracterizava por neuropatia óptica progressiva e recorrente com perda visual grave e que geralmente não respondia a tratamento com doses habituais de corticóide por via oral, necessitando altas doses de corticóide endovenoso e associação com imunossupressores. Mais recentemente Riedel et al.(19) acrescentaram mais dois pacientes desta condição incomum e demonstraram a importância da identificação de marcadores laboratoriais (anticorpo anti-nuclear, biópsia de pele com imunofluorescência, anticorpo anti-cardiolipina) a fim de permitir o diagnóstico e tratamento precoce, diferenciando esta condição da neurite óptica idiopática ou desmielinizante que habitualmente apresentam melhora visual importante e usualmente não necessitam de tratamento de manutenção.
A fisiopatogenia da neuropatia óptica auto-imune parece ser a combinação de um evento isquêmico do nervo óptico associado a lesões desmielinizantes(17). Riedel et al.(18), demonstraram através de estudos histopatológicos de tecidos de nervo óptico afetados por neuropatia óptica auto-imune, que esta afecção caracteriza-se por uma inflamação perivascular crônica não-granulomatosa. O acometimento vascular parece mesmo estar presente uma vez que os pacientes nem sempre apresentam melhora visual diferentemente dos casos idiopáticos e desmielinizantes. Desta forma o termo neurite óptica auto-imune utilizado inicialmente não é o mais adequado uma vez que a afecção combina características de afecção inflamatória/desmielinizante com isquêmica do nervo óptico sendo melhor o termo neuropatia óptica auto-imune. Esta neuropatia tem, portanto, características mais próximas das neuropatias ópticas associadas às colagenoses em especial ao lúpus eritematoso sistêmico(2-5). Jabs et al.(2) acreditam que a patogênese da neuropatia óptica no LES se deva à oclusão de pequenos vasos que nutrem o nervo óptico, levando a uma neuropatia óptica que combina desmielinização com isquemia do nervo óptico. Outras colagenoses, como a síndrome de Sjögren(6-13), também podem se associar a acometimento do nervo óptico e em alguns casos este é o primeiro sinal da doença.
Nossa paciente apresentou neuropatia óptica retrobulbar recorrente na presença de anticorpos anti-nucleares, anti-Ro e anti-La, e ausência de manifestações clínicas de doença sistêmica. Observou-se inicialmente resposta ao uso de corticosteróide em altas doses via endovenosa, seguido de prednisona oral, mas quando esta foi gradativamente diminuída houve recorrência dos sintomas. Mesmo com a re-introdução de altas doses de corticosteróide, não foi possível restituir a visão e evitar a atrofia óptica. É importante salientar a dificuldade na identificação da neuropatia óptica auto-imune e a importância da instituição precoce da terapêutica adequada, com imunossupressores de manutenção, diferentemente da abordagem da neurite óptica idiopática ou desmielinizante habitual. A neuropatia óptica auto-imune é responsiva a corticóide e corticóide-dependente(17). O tratamento deve ser prolongado e a diminuição do corticóide lenta e gradativa. Agentes imunossupressores devem ser adicionados se a baixa de visão recorrer em doses altas de corticóides ou se a monoterapia corticóide não prevenir recorrência(17).
A grande dificuldade no diagnóstico se deve à raridade desta neuropatia e ao fato das características clínicas serem semelhantes à neurite óptica mais comum. A possibilidade desta condição deve, no entanto ser lembrada e a avaliação laboratorial, incluindo a pesquisa de anticorpos antinucleares, ser realizada em pacientes com neurite óptica, além do exame clínico detalhado procurando evidências de doença auto-imune sistêmica. É claro que a presença de um fator antinuclear fracamente positivo não exclui uma neurite óptica idiopática ou mesmo uma doença desmielinizante e daí a dificuldade no diagnóstico diferencial. A suspeita de neuropatia óptica auto-imune deve ser, no entanto, ser considerada frente a todo caso de neurite óptica recorrente e de evolução atípica(18). Nossa paciente, por exemplo, já apresentava em retrospecto um histórico de perda visual bilateral e que não melhorou em um dos olhos o que é bastante incomum na neurite idiopática ou desmielinizante (pelo menos numa primeira crise). Além disso, a positividade do FAN era alta, o que diferencia nossa paciente dos casos mais comuns de FAN fracamente positivos e que não são considerados como significativos de doença auto-imune.
Pacientes com neuropatia óptica progressiva ou neurite óptica com perda visual severa que não remitem, devem ser investigados para vasculite sistêmica(17). Jabs et al.(2) sugerem que seja realizado anamnese, exame clínico e estudos sorológicos apropriados na suspeita de LES, a qual deve ser considerada frente a um caso de neuropatia óptica, uni ou bilateral, em qualquer paciente, particularmente em mulheres jovens. Dutton et al.(16) recomendam que seja feito um rastreamento para doença auto-imune nos pacientes com neurite óptica, pois alguns pacientes irão evoluir com perda visual irreversível se um fenômeno auto-imune não for diagnosticado. Os trabalhos de Kupersmith et al.(17) e Riedel et al.(18) reforçam esta recomendação. O caso de nossa paciente serve também para enfatizar a importância desta avaliação clínico-laboratorial sistêmica. Embora seja muitas vezes difícil a decisão num primeiro momento de se introduzir uma medicação imunossupressora, acreditamos que na presença desta neuropatia óptica auto-imune a introdução de imunossupressores logo após a resposta inicial a pulsoterapia corticóide seja a melhor maneira de se evitar a perda visual como ocorreu no caso descrito.
REFERÊNCIAS
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Endereço para correspondência:
Leandro Cabral Zacharias
Rua Manoel Guedes, 475 - Apto. 114
São Paulo (SP) CEP 04536-070
E-mail: [email protected]
Recebido para publicação em 30.05.2005
Versão revisada recebida em 09.12.2005
Aprovação em 15.02.2006
Trabalho realizado na Divisão de Clínica Oftalmológica do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo - USP - São Paulo (SP) - Brasil.
Nota Editorial: Depois de concluída a análise do artigo sob sigilo editorial e com a anuência do Dr. Marco Aurélio Lana Peixoto sobre a divulgação de seu nome como revisor, agradecemos sua participação neste processo.