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Editorial

Divulgação e certificação da ciência

Harley E. A. Bicas

DOI: 10.1590/S0004-27492009000400001

EDITORIAL

 

Divulgação e certificação da ciência

 

 

Harley E. A. Bicas

 

 

Ao lidar com a natureza, o Homem observa seus fenômenos, perscruta seus mecanismos e os transforma: tenta, erra e corrige, volta a tentar acerta e reproduz; enfim, mesmo em sua forma mais elementar, realiza experimentação. Aprende o processo e adquire conhecimento, usufrui dele, gosta, transmite-o a parceiros e às gerações seguintes. Estas já partem desse novo nível, aperfeiçoam o modelo e o ciclo se repete, construindo as civilizações. São condicionamentos atávicos, pelos quais diferenciação e domínio, instrumentos de poder, são gerados e acumulados. Fundamentalmente, conhecimento e informação ou, com outro palavreado, ciência e educação, substâncias do desenvolvimento humano.

À medida que cresce o acervo desses valores, novas descobertas e invenções deixam de ser casuais, exigindo disciplina e método, recursos, organização. A ciência torna-se complexa, passa de engenho natural e pessoal, a estruturada e coletiva; seu resultado deixa de ser circunstancial, mas abrangente, para buscar efeitos planejados, ainda que pontuais. Institucionaliza-se em academias, empresas, agências de governo. E enquanto a produção do conhecimento torna-se especializada, categorizando os cientistas como classe profissional, sua divulgação progressivamente a eles se restringe, pela rigorosa formação requerida a seu justo entendimento e transformação.

Nessa transição da ciência a processos mais elaborados, sua comunicação era deficiente e não são poucos os relatos de descobertas dessas épocas mais antigas que ficaram sem divulgação. Esta vai se convertendo em necessária e conveniente enquanto o móvel da descoberta e da invenção se materializa em prestígio, honra e fonte de renda. Precursores do intercâmbio de idéias, as epístolas entre estudiosos de um assunto permitiram que eles se consultassem embora, muitas vezes, em linguagem cifrada. Sociedades se constituíram e as atas de suas reuniões registram a síntese daquilo que se pode conceber como os primeiros relatos congressuais. Mas logo se torna evidente que, tanto pelo volume do que se pretendia comunicar, quanto pela agilidade da transmissão e pela conveniência de maior amplitude de seu alcance, eram requeridos veículos mais penetrantes que os raros livros então editados e mais acessíveis que os documentos das herméticas reuniões acadêmicas. Surgiam, assim, as primeiras revistas científicas, aliás, um fenômeno relativamente recente, de não mais que dois séculos.

Obviamente, como instrumento de poder a ciência não é sempre imediatamente divulgada. Governos são ciosos de algumas descobertas e as mantém como segredos de Estado (quando isso é possível...). Empresas registram inventos e descobertas sob forma de patentes e, mesmo então, não os tornam publicamente acessíveis. Mas de um modo ou de outro, ainda que métodos e técnicas sejam escondidos por algum tempo, ou que seus processos sejam controlados, o conhecimento acaba por se difundir, mais cedo, ou mais tarde. Ao contrário dessa ciência "enclausurada", a "livre", produzida em Universidades, é democraticamente publicada pelas revistas científicas especializadas.

Entretanto, ainda que gratuita, a ciência assim semeada segue sendo um valor de interesse a quem a produz, seja como prova de eficiência pessoal (por exemplo, a justificar progressões em carreiras acadêmicas, ou a mostrar desempenhos qualificados no exercício profissional), seja, até, como simples registro do trabalho a ser perenizado pela publicação. Com o crescente número de profissionais de uma área de atuação (por exemplo, a Oftalmologia) e dos de sua respectiva ampliação de limites (os cientistas propriamente ditos), a produção científica "livre" chegou a uma expansão explosiva nas últimas décadas, explicando o correspondente crescimento do número de revistas científicas especializadas para dar vazão a essa maior demanda de publicação.

Daí a necessária diferenciação entre esses órgãos e o novo degrau a subir. De registro e divulgação da ciência fabricada, a essência dessas revistas passa a certificação de valores da produção. A um autor, não basta, mais, provar que fez e publicou, garantindo essas informações pelo respectivo artigo em tal revista. É certo que, desse modo, a eventual precedência temporal de sua "propriedade" intelectual fica registrada, como num cartório. Mas, pela exacerbada competição, não basta dizer "fiz e publiquei". Aliás, ultimamente, isso pode até ser realizado pela publicação "eletrônica", na rede mundial de computadores. Publicar, por si próprio, deixa de ser o mais relevante. Importa, agora, que se diga "fiz bem, pois publiquei bem". Parece uma redundância. Não é.

Há revistas que publicam (o que podem). Outras são as que certificam a publicação. Isso é feito, basicamente, pelo critério mais agudo, ou menos, com que as matérias são selecionadas. Umas revistas vêem-se na contingência de publicar o que recebem, mesmo que os trabalhos não sejam ótimos (aceitando-se então os apenas "bons"; ou, talvez, os "regulares"; ou, quem sabe? até mesmo os "fracos") pela simples razão de que, se não o fizerem, não "fecham" o número. Outras, mais seletivas e exigentes, promovem razias tais que mesmo trabalhos muito bons chegam a ser recusados para publicação. É o critério dessa "certificação" que dá reconhecimento e "peso" à revista, ela própria passando a ser julgada entre congêneres como de qualidade confiável, ou não.

Há duas vertentes principais para a ampliação do conhecimento: uma é a de expansão de seus limites, ao se alcançar novas áreas, ainda inexploradas. Outra é a do aprofundamento, ao se recopilar um assunto, dando-lhe novas relações, ou maior clareza na sua compreensão. Em nossa revista, os artigos originais cumprem o primeiro papel, "científico"; os de atualização continuada (e, de certo modo, os relatos de casos), o segundo, "pedagógico". Não é o caráter da matéria que determina melhor ou pior reconhecimento de uma revista, mas a qualidade do conteúdo (e, implicitamente, de sua apresentação). Essa qualidade, por sua vez, depende de autores, isto é, da oferta do material que lhe chega; e de seus julgadores, sobre o mérito das respectivas contribuições. Há que nos conformarmos que, também nisso, somos "emergentes". Mas se não houver consciência sobre que esse fator pode e deve ser superado, não sairemos dessa condição; ou, se sairmos, mais tempo tardaremos nela. (E lembre-se que quem não emerge logo, se afoga...)

E somos "emergentes" não quanto à qualidade de nossa Oftalmologia, inquestionavelmente de excelente nível. Mas na quantidade dessa magnífica produção que se escoa para órgãos estrangeiros, prestigiando-os, reforçando-os, enquanto nossa editoração se empobrece com tal perda. Somos "emergentes" quando, mais uma vez, pela menor quantidade de julgadores, ficamos reféns de suas disponibilidades e boas vontades de examinar trabalhos, sem tardanças. Enfim, o que se precisa é do entendimento de que os Arquivos Brasileiros de Oftalmologia representam um dos melhores serviços disponibilizados pelo Conselho Brasileiro de Oftalmologia à Oftalmologia brasileira, mas que dela (isto é, de todos nós), visceralmente, depende, em troca.


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