Valmor Rios Leme1; Patrícia Mitiko Santello Akaishi1; Antonio Augusto V. Cruz1
DOI: 10.1590/S0004-27492003000700026
RESUMO
OBJETIVO: Descrever o caso de uma paciente portadora de orbitopatia de Graves com baixa visual no olho esquerdo há 9 meses e amaurose no direito há 20 dias secundária à neuropatia óptica. MÉTODOS: Foi realizada descompressão orbitária bilateral ínfero-medial por via transconjuntival. RESULTADOS: Após a cirurgia a paciente evoluiu lentamente com melhora progressiva da acuidade visual, obtendo 20/20 em ambos os olhos ao cabo de 10 meses. CONCLUSÕES: A descompressão orbitária é eficaz em restabelecer a visão em casos de amaurose por neuropatia óptica da orbitopatia de Graves com até 20 dias de instalação.
Descritores: Doenças do nervo óptico; Descompressão cirúrgica; Doença de Graves; Acuidade visual; Cegueira; Adulto; Feminino; Relato de caso
ABSTRACT
PURPOSE: To describe a patient with Graves' orbitopathy who presented with loss of vision of the left eye for 9 months and amaurosis of the right eye for 20 days. METHODS: Bilateral inferomedial transnconjunctival orbital decompression was performed. RESULTS: After orbital decompression, vision slowly improved and ten months after the surgery the vision was normal in both eyes. CONCLUSIONS: Orbital decompression can reestablish optic nerve function at least 20 days after amaurosis.
Keywords: Optic nerve diseases; Decompression, surgical; Graves' disease; Visual acuity; Blindness; Adult; Female; Case report
INTRODUÇÃO
A orbitopatia de Graves (OG) pode ser definida como uma doença auto-imune órgão-específica, clinicamente caracterizada por retração palpebral superior e/ou inferior, proptose e estrabismo(1-2). Na grande maioria dos casos a OG está associada ao hipertireoidismo decorrente do bócio difuso tóxico(3-4) sendo, portanto, uma das principais manifestações da doença de Graves, descrita na literatura européia no século XIX por Flajani, Parry, Graves e Basedow(5). Embora ocorra mais freqüentemente em mulheres adultas entre 30 e 50 anos de idade, a OG pode acometer pacientes de ambos sexos de diferentes faixas etárias, incluindo neonatos, crianças e adultos acima de cinqüenta anos de idade(1,4,6). Na população adulta, a OG é a causa mais comum de proptose, uni ou bilateral(1).
As principais estruturas orbitárias envolvidas no complexo processo auto-imune da doença são os músculos extra-oculares e o tecido adiposo, ambos passíveis de avaliação por exames de imagem como a ultra-sonografia, ressonância nuclear magnética e a tomografia computadorizada(7-8). O aumento das dimensões da musculatura extraocular é um achado freqüente, podendo variar desde um incremento mínimo de alguns músculos, até enorme alargamento de todos os músculos, especialmente os retos medial e inferior(9). Além de estrabismo restritivo, a hipertrofia muscular está fortemente associada à neuropatia óptica, que é uma das mais temidas complicações da OG, pelo risco de deficiência visual grave e permanente(10).
O objetivo deste trabalho é descrever uma paciente com neuropatia óptica bilateral e amaurose no olho direito há 20 dias devido a OG, que teve completa recuperação da acuidade visual em ambos os olhos após cirurgia descompressiva.
RELATO DE CASO
RSP, 33a, feminina, portadora de doença de Graves com orbitopatia há 1 ano. Fazia uso de propiltiuracil (100 mg/dia) e estava descontinuando um esquema de corticoterapia sistêmica (usava prednisona 20 mg/dia). No momento do exame oftalmológico estava com os hormônios tireoidianos normalizados. Referia perda visual progressiva em ambos os olhos há 9 meses e há 20 dias perda total da visão em OD. O exame oftalmológico mostrava retração palpebral superior em ambos os olhos e moderada proptose (exoftalmometria de Hertel 28 mm em OD e 26 mm em OE). O segmento anterior, fundoscopia e pressão intra-ocular eram normais. O exame dos reflexos pupilares revelava defeito pupilar aferente em OD (sinal de Marcus Gunn). A acuidade visual do olho esquerdo era igual a 0,5. No olho direito não havia percepção luminosa. A tomografia computadorizada de órbitas revelou importante espessamento muscular bilateral, com compressão do nervo óptico no ápice orbitário ("apical crowding") à direita (Figura 1). Devido à gravidade do quadro do olho direito, foi imediatamente indicado tratamento cirúrgico descompressivo. Outros testes psicofísicos como campimetria computadorizada e visão de cores, não foram realizados no olho esquerdo antes da cirurgia.
A paciente foi submetida à descompressão orbitária bilateral, por via transconjuntival ínfero-medial bilateral. A técnica usada combinava o acesso para o soalho(11-12) com a abordagem transcaruncular(13). Após a cirurgia a paciente evoluiu, com restabelecimento paulatino da visão em ambos os olhos. Dez meses após a cirurgia a visão era 20/20 em ambos em olhos e 1 ano após, a campimetria revelava no OD apenas uma perda generalizada da sensibilidade [desvio médio (MD) de -5,72 dB, p < 0,005], sendo normal no olho esquerdo.
DISCUSSÃO
A neuropatia óptica da OG é diagnosticada através de exames psicofísicos clássicos, dentre os quais os principais são a campimetria, e os estudos do sentido cromático e da sensibilidade ao contraste(14-18). A medida da acuidade visual não é considerada um exame sensível para a detecção da neuropatia óptica da OG(18) e, dessa maneira, déficits de acuidade visual são interpretados como indicadores de grave perda visual.
Não existem muitas opções para o tratamento da neuropatia óptica da OG. Se ela ocorre num contexto de orbitopatia aguda, isto é, acompanhada de sinais flogísticos (quemose, edema palpebral, hiperemia conjuntival) e sintomas como dor e lacrimejamento, a modalidade inicial de tratamento é o clínico com drogas imunossupressoras (esteróides sistêmicos) e radioterapia orbitária. Já nos casos crônicos ou não responsivos ao tratamento clínico, a descompressão orbitária é a única opção viável(19-20).
A descompressão orbitária é um procedimento cirúrgico que atua na relação continente/conteúdo da órbita. Na maioria dos casos, a cirurgia visa o aumento das dimensões orbitárias por meio da remoção de porções ou, até mesmo, partes inteiras das paredes orbitais(21). Quando o continente orbitário é aumentado, a pressão intra-orbitária é reduzida e o seu conteúdo é mais bem acomodado. Esses dois efeitos explicam a melhora das funções visuais nos casos de neuropatia óptica da OG após descompressões bem sucedidas.
O resultado cirúrgico mais valorizado é o aumento das dimensões do ápice orbitário. Levando-se em conta que o principal mecanismo aventado para a perda visual na OG é a compressão do nervo óptico no ápice orbitário pela musculatura alargada ("apical crowding")(22), é fácil aceitar a noção de que a descompressão orbitária pode realmente beneficiar os pacientes com neuropatia óptica por doença de Graves.
Embora, não haja um consenso do ganho visual que se consegue com a cirurgia, a melhoria das funções visuais após a descompressão orbitária é bem documentada na literatura(19-20). De uma maneira geral, pode-se dizer que déficits campimétricos periféricos são bem revertidos cirurgicamente. O caso em questão difere dos já apresentados na literatura(19-20), pela magnitude da melhora da acuidade visual conseguida com a descompressão, pois não temos conhecimento de nenhum caso publicado de amaurose por OG completamente revertida após a cirurgia descompressiva.
Em resumo, o caso relatado indica que, na neuropatia óptica da OG, o nervo óptico pode ter função restabelecida pela cirurgia descompressiva mesmo após 20 dias de amaurose.
REFERÊNCIAS
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Endereço para correspondência
Antonio Augusto Velasco e Cruz
Departamento de Oftalmologia, Otorrinolaringologia e Cabeça e Pescoço da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto - USP - Hospital das Clínicas - Campus
Av. Bandeirantes, 3900
Ribeirão Preto (SP) CEP 14049-900
E-mail: [email protected]
Recebido para análise em 18.04.2002
Versão revisada recebida em 28.01.2003
Aprovação em 09.05.2003
Trabalho realizado no Departamento de Oftalmologia, Otorrinolaringologia e Cabeça e Pescoço da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto Universidade de São Paulo USP.
Nota Editorial: Pela análise deste trabalho e por sua anuência na divulgação desta nota, agradecemos ao Dr. Alexandre Chater Taleb.