1
View
Open Access Peer-Reviewed
Editorial

Ptose palpebral associada a paquidermoperiostose: relato de caso

Eyelid ptosis associated with pachydermoperiostosis: case report

Ana Paula Ximenes Alves1; Joana Gurgel Holanda Filha2; Fabiane Trindade Jerônimo3

DOI: 10.1590/S0004-27492005000300025

RESUMO

Descreve-se caso clínico de um indivíduo acometido por paquidermoperiostose, cuja queixa principal foi ptose palpebral bilateral. Trata-se de doença hereditária, autossômica dominante, que acomete a pele, os ossos e os tecidos moles, resultando em acentuada hipertrofia tarsal. Discute-se a fisiopatologia da ptose e o tratamento executado no caso.

Descritores: Blefaroptose; Blefaroptose; Osteoartropatia hipertrófica primária; Relatos de casos

ABSTRACT

We describe a clinical case of a patient with pachydermoperiostosis and bilateral palpebral ptosis. It is a hereditary, dominant autosomic disease, which affects skin, bones and soft tissues. In the eyelid, it causes an important tarsal hypertrophy. We discuss the physiopathology and treatment of the ptosis.

Keywords: Blepharoptosis; Blepharoptosis; Osteoarthropathy, primary hypertrophic; Case reports


 

 

INTRODUÇÃO

Paquidermoperiostose ou osteoartropatia hipertrófica primária é uma rara doença hereditária caracterizada por hiperostose, baqueteamento digital e acometimento cutâneo.

Uma das características principais da doença é a paquidermia, espessamento cutâneo causado por hiperplasia endotelial na derme, infiltrado de linfócitos e histiócitos, além de depósito de fibras colágenas(1). Estas alterações costumam afetar a face do paciente, conferindo-lhe feições grosseiras, incluindo as pálpebras.

A hiperostose, por sua vez, consiste na formação de tecido ósseo sob o periósteo do osso normal. Acomete principalmente as extremidades distais dos metacarpos, metatarsos e ossos longos. O baqueteamento digital decorre da proliferação de tecido conectivo no leito ungueal, associada à dilatação e hipertrofia da parede dos pequenos vasos.

Relatamos aqui um caso em que a queixa principal do paciente foi ptose palpebral relacionada à doença.

 

CASO CLÍNICO

MAP, sexo masculino, 60 anos, procedente de Camocim, CE, a 360 km de Fortaleza, agricultor, solteiro, procurou o Hospital Geral César Cals em abril de 2002, com queixa de "problema no olho". Referiu que há cerca de 4 anos vinha evoluindo com dificuldade para abrir os olhos, associada a um aumento da espessura palpebral, pior à direita. Apresentava ainda prurido palpebral e secreção ocular mucóide, crônicos.

Além das queixas oftalmológicas, referia aumento de volume das extremidades desde a infância (pés e mãos) e que vinha evoluindo com aumento de volume e dor nas articulações dos punhos, tornozelos, joelhos, dedos das mãos e ombro (Figura 2). Queixou ainda de cefaléia crônica, adinamia e sudorese profusa.

 

 

 

 

Ao exame, apresentava acuidade visual de 20/400 e 20/60 com correção (-9.0 D esf. x -1.75 cil 161º no olho direito e -2.5 D esf. x -2.25 cil 110º no esquerdo) e exotropia com desvio do olho direito. Apresentava ptose palpebral bilateral severa, que lhe causava dificuldade de locomoção (Figura 1). Mesmo usando os músculos frontais, não era possível visualizar o reflexo corneano (distância margem-reflexo negativa). A fenda palpebral era de 2,0 mm em ambos os olhos; a medida da excursão da pálpebra superior era próxima de zero e não havia sulco palpebral superior. À biomicroscopia evidenciava um aumento importante de espessura dos tarsos e papilas gigantes nos tarsos superiores (Figura 3). Apresentava catarata nuclear mais pronunciada à direita. Não havia alterações corneanas ou na câmara anterior. Tonometria de 20 e 12 mmHg e fundoscopia normal em ambos os olhos.

 

 

Foi submetido a uma extensa investigação clínica, que detectou um hipotireoidismo e hipertensão arterial sistêmica. Foram afastadas causas pulmonares, cardíacas, endócrinas ou paraneoplásicas que explicassem seu quadro cutâneo e osteoarticular. O diagnóstico final foi então, de osteoartropatia hipertrófica primária, corroborado pela informação de que um irmão (entre 6) e dois filhos de uma prima do paciente apresentavam alterações sistêmicas semelhantes.

Paralela à investigação clínica, foi submetido a uma biópsia palpebral (exérese de pentágono), que revelou hipertrofia de glândulas sebáceas. Realizou-se, então, um avançamento da aponeurose do elevador, que se encontrava desinserida, sem bom resultado. Num segundo tempo, foi submetido a um encurtamento horizontal das pálpebras superiores e inferiores, conseguindo-se medir uma distância margem-reflexo de 2,0 mm bilateral e satisfação do paciente (Figura 4).

 

 

COMENTÁRIOS

O baqueteamento digital, um dos primeiros sinais clínicos que surgem nas osteoartropatias hipertróficas, foi descrito por Hipócrates em 450 AC(2). Achado semelhante foi visto em esqueletos da América Central, da mesma época(2). Trata-se, portanto, de uma doença reconhecida desde a Antigüidade.

Só mais tarde descobriu-se, porém, duas formas da doença: a osteoartropatia hipertrófica (OAH) primária, também chamada de síndrome de Touraine-Solente-Gole, e a doença secundária, síndrome de Pierre-Marie-Bamberger(3). Esta última é mais prevalente, ocorrendo em associação a doenças pulmonares, cardíacas, hepáticas, intestinais, doença de Graves, entre outras(4). Acredita-se que nestas doenças, fatores de crescimento tecidual normalmente inativos ou removidos na sua passagem pelo pulmão, alcançariam a circulação sistêmica na sua forma ativa, e induziriam às alterações vistas na osteoartropatia hipertrófica. Distúrbios de plaquetas, fibroblastos e células endoteliais foram descritos(5).

A OAH primária consiste em doença hereditária, autossômica dominante, mais comum em homens(6) e de fisiopatologia ainda desconhecida. Estudos apontam para distúrbio primário dos fibroblastos, envolvendo proliferação anormal(7) e síntese aumentada de glicosaminoglicanas(8). Tem início na infância, progride por alguns anos e estaciona. Na pele, além da paquidermia, verificam-se alterações glandulares, como hiperhidrose, hipertrofia sebácea, acne e foliculite.

As pálpebras encontram-se espessadas, sobretudo o tarso, às custas de hipertrofia das glândulas de Meibomius(9-10), o que é facilmente explicado pela hipertrofia sebácea generalizada vista na doença. Este espessamento acaba por produzir ptose mecânica, associada ou não a desinserção da aponeurose do elevador(10-11). No caso descrito, o componente mecânico foi mais importante na fisiopatologia da ptose, tendo em vista que o melhor resultado cirúrgico só foi conseguido após o encurtamento das pálpebras. Os autores avaliam que o encurtamento horizontal foi benéfico nesse tipo de paciente porque diminuiu a massa palpebral e assim, o efeito mecânico da hipertrofia tarsal. Raciocínio semelhante explica porque uma tarsectomia transconjuntival também pode dar bom resultado(11).

Vale ressaltar que as pálpebras inferiores também foram encurtadas porque obstruíam o eixo visual do paciente no olhar para baixo. Quadro semelhante é visto em alguns casos de retração de pálpebra inferior que recebem enxerto ou implante espaçador e evoluem com distúrbio da motilidade palpebral(12). No nosso paciente isso ocorre em decorrência da grande hipertrofia tarsal e conseqüente falência dos retratores em movimentá-lo.

É interessante observar que o paciente desconhecia a sua doença sistêmica e aceitou-a até que a ptose palpebral comprometesse as suas tarefas diárias, quando veio à Fortaleza procurar tratamento. Tal grau de acometimento oftalmológico na paquidermoperiostose não parece ser comum, visto que, na literatura nacional, os relatos de caso privilegiam os aspectos ósseos e cutâneos da doença(13-21).

Outro aspecto curioso do caso é que o paciente relata que os seus parentes acometidos pela OAH também já têm comprometimento palpebral significativo, mas não se dispõem a procurar assistência médica especializada. Isto reflete a dificuldade de acesso ao oftalmologista, que se concentra nas grandes cidades e não atende à população rural e dos pequenos centros urbanos (Camocim tem cerca de 51000 habitantes e fica a 360 km de Fortaleza).

A biópsia palpebral mostrou alterações inespecíficas, compatíveis com a doença, mas incapazes de elucidar o caso. Só a investigação clínica minuciosa, que afastou diagnósticos diferenciais como acromegalia, insuficiência cardíaca e pulmonar, foi capaz de chegar ao diagnóstico correto.

Além da ptose, estes pacientes podem apresentar distrofia macular, uma distrofia corneana da membrana de Bowman, e leucoma corneano(22). O tratamento sistêmico é feito com antiinflamatórios não hormonais, para alívio da dor. Na falência desses, pode-se fazer uso de bisfosfonados(23).

 

AGRADECIMENTOS

Ao setor de Clínica Médica do Hospital César Cals de Fortaleza, ao setor de Oftalmologia do Hospital Geral e do Hospital Universitário de Fortaleza.

 

REFERÊNCIAS

1. Matucci-Cerinic M, Lotti T, Calvieri S, Ghersetich I, Sacerdoti L, Teofoli P, et al. The spectrum of dermatological symptoms of pachydermoperiostosis (primary hypertrophic osteoarthropathy): a genetic, cytogenetic and ultrastructural study. Clin Exp Rheumatol. 1992;10 Suppl 7:45-8.        

2. Martinez-Lavin M, Mansilla J, Pineda C, Pijoan C, Ochoa P. Evidence of hypertrophic osteoarthropathy in human skeletal remains from pre-Hispanic Mesoamerica. Ann Intern Med. 1994;120(3):238-41.        

3. Eckardt A, Kreitner KF. [Primary hypertrophic osteoarthropathy]. Z Orthop Ihre Grenzgeb. 1995;133(4):303-5. German.        

4. Lavín-Martinez M. Regional and heritable bone and collagen diseases/hypertrophic osteoarthropathy. In: Klippel JH, Dieppe PA. Rheumatology. 2nd ed. London: Mosby; 1998. p.46.1-46.4.        

5. Silveira LH, Martinez-Lavín M, Pineda C, Fonseca MC, Navarro C, Nava A. Vascular endothelial growth factor and hypertrophic osteoarthropathy. Clin Exp Rheumatol. 2000;18(1):57-62.        

6. Jansen T, Brandl G, Bandmann M, Meurer M. [Pachydermoperiostosis]. Hautarzt. 1995;46(6):429-35. German.        

7. Matucci-Cerinic M, Sacerdoti L, Perrone C, Carossino A, Cagnoni ML, Jajic I, Lotti T. Pachydermoperiostosis (primary hypertrophic osteoarthropathy): in vitro evidence for abnormal fibroblast proliferation. Clin Exp Rheumatol. 1992;10 Suppl 7:57-60.        

8. Wegrowski Y, Gillery P, Serpier H, Georges N, Combemale P, Kalis B, Maquart FX. Alteration of matrix macromolecule synthesis by fibroblasts from a patient with pachydermoperiostosis. J Invest Dermatol. 1996; 106(1):70-4.        

9. Kirkpatrick JN, McKee PH, Spalton DJ. Ptosis caused by pachydermoperiostosis. Br J Ophthalmol. 1991;75(7):442-6.        

10. Friedhofer H, Salles AG, Gemperli R, Ferreira MC. Correction of eyelid anomalies in pachydermoperiostosis. Ophthal Plast Reconstr Surg. 1999; 15(2):137-8.        

11. Arinci A, Tumerdem B, Karan MA, Erten N, BuyukbabanI N. Ptosis caused by pachydermoperiostosis. Ann Plast Surg. 2002;49(3):322-5.        

12. Wearne MJ, Sandy C, Rose GE, Pitts J, Collin JR. Autogenous hard palate mucosa: the ideal lower eyelid spacer? Br J Ophthalmol. 2001;85(10):1183-7.        

13. Carvalho TN, Araújo Júnior CR, Fraguas Filho SR, Costa MAB, Teixeira KISS, Ximenes Ca. Osteoartropatia hipertrófica primária (paquidermoperiostose): relato de casos em dois irmãos. Radiol Bras. 2004;37(2):147-9.        

14. Batista AAP, Bianco JAP, Batista AP, Alves LR, Afonso A, Silva HSL, et al. Osteoartropatia hipertrófica primária: relato de caso e revisão da literatura. Radiol Bras. 2003;36(3):183-6.        

15. Ribeiro RC, Santos OLR, Moreira A, Oliveira Neto MP. Paquidermoperiostose. J Bras Med. 1993;64(6):43-6,50,52.        

16. Cruz MA, Pereira GJC, Pereira HR. Osteoartropatia hipertrófica primária: descrição de um caso e revisão da literatura. J Bras Med. 1995;69(5/6):145-62.        

17. Macedo LMG, Tormin FB, Gonçalves HAT, Nóbrega MB, Ferreira MS, Maia ABA, et al. Paquidermoperiostose: relato de um caso e revisão da literatura. Rev Bras Reumatol. 1990;30(2):67-70.        

18. Inocêncio RM, Moreira HNC, Bertolo MB, Samara AM. Osteoartropatia hipertrófica primária (paquidermoperiostose): relato de dois casos e revisão da literatura. Rev Bras Reumatol. 1992;32(1):34-40.        

19. Marques GC, Seragini FC, Kuester IMJ, Maio E. Paquidermoperiostose. Klinikos. 1987;3(12):17-9.        

20. Laredo Filho J, Lazzareschi M, Braga Júnior MB, Kasinski S, Brizzi JJ. Paquidermoperiostose: atrofia hipertrófica primária: estudo de dois pacientes. Rev Imagem. 1986;8(1):1-8.        

21. Souza BDB, Beltreschi F, Russo Filho FS, Carlquist I. Paquidermoperiostose: relato de caso. Rev Bras Reumatol. 1985;25(6):209-10.        

22. Orentreich DS, Orentreich N. Dermatology of the eyelids (excluding neoplasms). In: Nesi FA, Levine MR, Lisman RD. Smith's ophthalmic plastic and reconstructive surgery. 2nd ed. St. Louis: Mosby; 1997. p.515-6.        

23. Guyot-Drouot MH, Solau-Gervais E, Cortet B, Deprez X, Chastanet P, Cotten A, Delcambre B, Flipo RM. Rheumatologic manisfestations of pachydermoperiostosis and preliminary experience with bisphosphonates. J Rheumatol. 2000;27(10):2418-23.        

 

 

Endereço para correspondência
Rua Tibúrcio Cavalcante, 847 - Apto. 1801
Fortaleza (CE) CEP 60125-100
E-mail: [email protected]

Recebido para publicação em 12.05.2004
Versão revisada recebida em 17.11.2004
Aprovação em 17.01.2005

 

 

Trabalho realizado no Departamento de Cirurgia da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Ceará, Setor de Oftalmologia do Hospital Geral de Fortaleza. Ceará (CE).
Nota Editorial: Após concluída a análise do artigo sob sigilo edotorial e com a anuência do Dr. Waldir Martins Portellinha sobre a divulgação de seu nome como revisor dele, agradecemos sua participação nesse processo


Dimension

© 2024 - All rights reserved - Conselho Brasileiro de Oftalmologia