Open Access Peer-Reviewed
Editorial

Catarata na infância: perfil socioeconômico, gestacional e desenvolvimento neuropsicomotor

Cataract in childhood: socioeconomic and gestational profiles and neuropsychomotor development

Cristiane Bezerra da Cruz1; Daniela Endriss2; Bruna Ventura4; Liana Ventura5

DOI: 10.1590/S0004-27492005000100003

RESUMO

OBJETIVO: Analisar o perfil socioeconômico e gestacional e o desenvolvimento neuropsicomotor de pacientes com catarata infantil atendidos em centro de referência oftalmológica no estado de Pernambuco, Brasil. MÉTODOS: Aplicou-se um questionário estruturado, em outubro e novembro de 2003, aos genitores das crianças submetidas à cirurgia de catarata infantil na Fundação Altino Ventura. RESULTADOS: Dos 40 pacientes, 23 eram do gênero feminino (57,0%) e 17 do masculino (43,0%). A maioria das mães (65,0%) e dos pais (55,0%) das crianças informou ter como grau de instrução o primeiro grau incompleto. A renda familiar variou de 1 a 3 salários mínimos, em 70,0% dos casos. Quanto ao estado civil 40,0% dos genitores eram casados. Trinta e nove mães (97,5%) fizeram pré-natal, 37 (92,5%) referiram não terem sido imunizadas contra a rubéola, e 13 (32,5%) referiram rubéola na gravidez. Três mães (7,5%) referiram consangüinidade com seus cônjuges e cinco (12,5%) relataram exposição a medicamentos durante a gestação. O desenvolvimento neuropsicomotor da maioria dos pacientes analisados estava dentro dos limites tidos como normais em outros estudos. Quatorze pacientes (35,0%) tinham idade maior ou igual que 6 anos no momento da entrevista e, onze desses (78,5%) estavam na escola. O índice de repetência escolar dessas crianças foi de 45,4%. CONCLUSÃO: Na amostra estudada, observou-se que os pacientes caracterizavam-se por pertencerem a uma população de baixa renda. Menos da metade dos pais entrevistados eram casados e, os pacientes tinham baixo rendimento escolar. Identificaram-se falhas no sistema de saúde quanto à imunização para rubéola.

Descritores: Catarata; Extração de catarata; Classe social; Fatores socioeconômicos; Gravidez; Desenvolvimento infantil; Criança

ABSTRACT

PURPOSE: To analyze the socioeconomic and gestational profiles, and the neuropsychomotor development of patients with infantile cataract cared for at a medical ophthalmologic center in Pernambuco state, Brazil. METHODS: A standardized questionnaire was applied, in October and November 2003, to the parents of children who underwent child cataract surgery at the Altino Ventura Foundation. RESULTS: Of the 40 patients, 23 were females (57.0%) and 17 males (43.0%). Most of the mothers (65.0%) and fathers (55.0%) of the children informed that they had not finished elementary school. The family income was between 1 and 3 minimum wages in 70.0% of the cases. As for the parental marital status, 40.0% of them were married. Thirty-nine mothers (97.5%) underwent prenatal exams, 37 reported that they had not received rubella immunization (92.5%), and 13 reported rubella during their pregnancy (32.5%). Three mothers reported consanguinity with their husbands and 5 were exposed to medications during pregnancy. Most of the patients had a neuropsychomotor development within limits considered normal by other studies. Fourteen patients (35.0%) were 6 years or older when the interview was performed. Eleven (78.6%) of these children attended school and 45.4% of them had to repeat the school grade. CONCLUSION: It was observed in the studied sample that the patients were characterized by being part of a low-income population. Less than half of the interviewed parents were married and the patients presented low school performance. Insufficiencies in the health system as regards immunization against rubella was identified.

Keywords: Cataract; Cataract extraction; Social class; Socioeconomic factors; Pregnancy; Child development; Child


 

 

INTRODUÇÃO

A perda da visão pela catarata congênita, em países em desenvolvimento, representa um grande problema em termos de morbidade, perda econômica e peso social(1). Independente da causa, a cegueira infantil traz sérios agravos à criança e à sua família por toda a vida. Isso influencia as perspectivas pessoais, educacionais, de emprego e sociais. O controle da cegueira na infância tem sido uma prioridade para a Organização Mundial de Saúde (OMS), visando a eliminação da cegueira prevenível no ano de 2020(1-2).

Em geral, a catarata na criança tem prognóstico mais reservado do que a do adulto. O prognóstico visual está diretamente relacionado à idade do diagnóstico e tratamento, correção óptica utilizada e tratamento da ambliopia(3-4).

As etiologias mais comuns da catarata congênita incluem infecções intra-uterinas, desordens metabólicas e síndromes transmitidas geneticamente(5-6). A etiologia infecciosa promove alterações sistêmicas e oculares que impossibilitam, em muitos casos, a precocidade da cirurgia(7). Quando se refere à catarata congênita inclui-se, também, as cataratas infantis, já que os mesmos fatores causais podem estar ligados à gênese das opacidades cristalinianas surgidas por ocasião do nascimento ou da primeira infância(8-9).

Em se tratando do futuro de qualquer sociedade, é hora de dar ao tratamento da catarata na infância a mesma atenção desprendida ao tratamento da catarata no adulto ao longo de vários anos(1). Sendo assim, os programas para diagnóstico precoce e efetiva reabilitação visual dessas crianças devem ser cuidadosamente planejados, e para isso é imprescindível o conhecimento das características intrínsecas dessa população. Em vista disso, o presente estudo foi elaborado com o objetivo de avaliar o perfil socioeconômico, gestacional e desenvolvimento neuropsicomotor dos pacientes com catarata infantil, atendidos na Fundação Altino Ventura (FAV), centro de referência na região para os pacientes assistidos pelo Sistema Único de Saúde (SUS).

 

MÉTODOS

O presente estudo foi realizado após aprovação pelo comitê de ética em pesquisa da FAV (CONEP). Aplicou-se um questionário estruturado, nos meses de outubro e novembro de 2003, em 40 genitores de pacientes submetidos à cirurgia de catarata infantil na FAV (Quadro 1). Os pacientes foram analisados quanto ao desenvolvimento neuropsicomotor, a história gestacional e dados socioeconômicos dos genitores.

 

RESULTADOS

Dos 40 pacientes estudados, 23 eram do gênero feminino (57,0%) e 17 do masculino (43,0%). A idade das crianças com catarata infantil no momento da entrevista variou de 0 a 10 anos, com média de 5,0±2,6 anos.

A maioria das genitoras (26 casos, 65,0%) e dos genitores (22 casos, 55,0%) das crianças com catarata infantil, informou ter como grau de instrução o 1º grau incompleto (Tabela 1). Quanto à renda familiar, 70,0% dos entrevistados afirmaram receber de 1 a 3 salários mínimos ao mês (Tabela 2). Em relação ao estado civil, apenas 40,0% dos pais (16 casos) eram casados (Tabela 3).

 

 

 

 

 

 

Trinta e nove genitoras (97,5%) informaram ter feito o pré-natal; o número de consultas variou de 3 a 9 com média de 1,9± 6,8 consultas. O número de gestações referido por cada genitora variou de 1 a 7, com média de 2,8±1,4 gestações.

Dez genitoras (25,0%) informaram a ocorrência de aborto espontâneo, e três (7,5%) referiram consangüinidade com seu cônjuge. Cinco genitoras (12,5%) referiram exposição a medicamentos durante a gravidez. Dessas, três (60,0%) utilizaram chá com a intenção de provocar o aborto e duas tomaram antibióticos (40,0%).

Trinta e sete genitoras (92,5%) não foram vacinadas contra rubéola e 13 (32,5%) referiram rubéola na gravidez.

Treze pacientes (32,5%) relataram infecção durante a gestação, sendo desses sete (53,8%) relatos de infecção urinária, cinco (38,5%) de infecção vaginal e um (7,7%) de sífilis. Houve sete relatos (17,5%) de sangramento na gravidez, ocorrendo entre os três e oito meses de gestação.

Cinco genitoras (12,5%) relataram fumar durante a gestação e cinco (12,5%) ingeriram bebidas alcoólicas na gravidez. A maioria das gestações foi a termo (82,5%).

O peso das crianças ao nascimento, informado pelas genitoras, variou de 1,5 a 3,9 quilogramas (kg) no gênero feminino, com média de 2,9±0,6 kg, e de 1,9 a 4,2 kg com média de 3,1± 0,7 kg, no masculino. A estatura desses pacientes variou de 43 a 52 centímetros (cm), com média de 48,8±2,3 cm, no gênero feminino, e de 43 a 53 cm com média de 48,7±3,3 cm, no masculino.

Quanto ao desenvolvimento neuropsicomotor, a maioria dos pacientes sustentou o pescoço no segundo trimestre de vida, sentou durante o segundo semestre de vida e engatinhou no final do segundo semestre. Trinta e uma crianças (77,5%) andaram entre 12 e 24 meses de idade, e trinta falaram (75,0%) as primeiras palavras entre 11 e 15 meses de idade (Tabela 4).

 

 

Quatorze pacientes (35,0%) tinham idade maior ou igual que 6 anos no momento da entrevista e, onze desses (78,5%) estavam na escola. O índice de repetência escolar dessas crianças foi de 45,4%.

 

DISCUSSÃO

A catarata infantil, como causa de cegueira, reveste-se de suma importância por sua incidência e por representar um encargo socioeconômico elevado, além das repercussões pessoais e familiares(1-2). O conhecimento do perfil socioeconômico, gestacional e do desenvolvimento neuropsicomotor dessas crianças é fundamental para o planejamento de ações efetivas de prevenção e reabilitação visual.

Estima-se que uma criança torna-se cega a cada minuto no mundo, e que esta freqüência seja ainda maior em países em desenvolvimento. Dentre as 1,5 milhões de crianças cegas no mundo, 75% apresentam causas preveníveis ou curáveis(1,10-11). A catarata congênita é uma entidade responsável por altas taxas de cegueira prevenível e tratável em todo mundo(1,4).

Em um estudo realizado com 106 casos de catarata congênita, 14,5% das genitoras declararam ter tido rubéola durante a gestação(8). No presente trabalho, 32,5% das mães referiram rubéola no período gestacional, no entanto, os autores acreditam que este número pode estar subestimado, devido à falta de esclarecimento da população acerca da doença e, falhas no diagnóstico, já que muitas vezes a rubéola manifesta-se subclinicamente.

A associação entre catarata congênita e o vírus da rubéola já é bem estabelecida. Programas de imunização em países em desenvolvimento têm contribuído para a erradicação da doença, entretanto, a infecção por rubéola ainda permanece nos países onde os programas não são adequadamente realizados(3,12). No presente estudo, a maioria das genitoras (92,5%) relatou não ter sido imunizada contra a rubéola, o que demonstra falhas na saúde pública do país, principalmente em se tratando de uma população de baixa renda e de baixo nível de instrução.

A vacina tríplice viral (contra sarampo, parotidite epidêmica e rubéola) foi introduzida gradualmente no esquema básico de vacinação preconizado pelo Programa Nacional de Imunização a partir de 1993, no grupo compreendido entre 1 a 10 anos de idade. Em junho de 2000 o estado de Pernambuco implantou a dupla viral (vacina contra sarampo e rubéola), sendo a tríplice viral implantada em janeiro de 2001(13). Em novembro de 2001 realizou-se uma primeira etapa da campanha nacional de imunização para mulheres de idade fértil (12 a 39 anos) em 13 estados brasileiros. A segunda etapa da campanha realizou-se em outros 11 estados em junho de 2002(14). Dessa forma, espera-se que a vacinação seja cada vez mais divulgada e realizada para que, em um futuro próximo, o número de mulheres não imunizadas contra a rubéola seja minorado e, assim, a infecção seja realmente prevenida.

A ingestão de medicamentos durante a gestação foi referida, no presente trabalho, por 12,5% das genitoras entrevistadas e o uso de chás abortivos foi declarado por 7,5% do total de genitoras pesquisadas. Em um estudo realizado com 106 casos de catarata congênita, 2,9% das genitoras relataram a ingestão de algum tipo de droga (medicamentosa ou não)(8). Em outro estudo, com pacientes portadores da síndrome de Moebius, com características socioeconômicas semelhantes à amostra do presente estudo, verificou-se o uso de medicamentos com fins abortivos em 60,7% dos casos e de chás com a mesma finalidade em 21,4% dos casos(15).

O recém-nascido normal apresenta uma estatura média de 50 cm no gênero masculino, e 49 cm no feminino. O peso ao nascimento é muito variado, sendo a média de 3,5 kg para o gênero masculino e 3,2 kg para o feminino(16). No presente estudo, o peso médio ao nascimento foi menor em ambos os gêneros, no entanto é importante salientar que a amostra é pequena e se trata de uma população de baixa renda. Quanto ao desenvolvimento neuropsicomotor, não houve diferença em relação aos dados da literatura quando se relaciona com a maioria dos pacientes(17).

No presente estudo o índice de repetência escolar foi de 45,4%, refletindo um baixo rendimento escolar desses pacientes, provavelmente devido ao importante déficit visual que pode existir, dependendo principalmente da idade do diagnóstico e tratamento da catarata infantil e, a probabilidade de anormalidades sistêmicas associadas nessas crianças. Uma abordagem multidisciplinar proporcionaria um maior suporte psicopedagógico a estes pacientes, promovendo a estimulação dos seus talentos e sua inserção na sociedade.

O presente trabalho mostrou-se pioneiro, apontando indicadores do perfil socioeconômico desses pacientes, onde se verificou que a maioria dos casos da amostra estudada consistiu de pacientes provenientes de classe social menos favorecida, com menos da metade dos genitores casados. Além disso, identificaram-se falhas no sistema de saúde do país quanto à imunização contra a rubéola. É importante salientar as repercussões pedagógicas que a catarata infantil propicia.

A análise dos dados, do presente estudo, mostrou-se como um instrumento válido para um melhor conhecimento acerca dos pacientes com catarata infantil, subsidiando um melhor planejamento dos projetos de prevenção da cegueira do nosso país.

 

REFERÊNCIAS

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13. Brasil. Ministério da Saúde. Fundação Nacional de Saúde. Vigilância epidemiológica. Calendário de vacinação 1999-2002. [citado 2003 nov 1]. Disponível em: http://www.funasa.gov.br/imu/imu02>        

14. Accelerated control of rubella and prevention of congenital rubella syndrome, Brazil. Wkly Epidemiol Rec. 2002;77(2):169-75.        

15. Sena M, Ventura L, Miller M, Almeida HC, Leal DB, Brandt CT. Perfil sócio demográfico e gestacional de pacientes com a seqüência de Möbius. An Fac Med Univ Fed Pernamb. 2003;48(1):36-41.        

16. Ferreira OS, Samico I. Crescimento e desenvolvimento. In: Figueira F, Ferreira OS, Alves JGB. Pediatria Instituto Materno Infantil de Pernambuco (IMIP). 2a ed. Medsi; 1996. p.43.        

17. Marcondes E, Machado DVM, Setian N, Carrazza FR. Crescimento e desenvolvimento. In: Marcondes E. Pediatria básica. 8a ed. São Paulo: Sarvier; 1999. p.46-7.        

 

 

Endereço para correspondência
Fundação Altino Ventura
Rua da Soledade 170, Boa Vista
Recife - PE CEP 50070-040
E-mail: [email protected]

Recebido para publicação em 04.02.2004
Versão revisada recebida em 27.07.2004
Aprovação em 30.08.2004

 

 

Trabalho realizado no Departamento de Oftalmologia Pediátrica e de Catarata Congênita da Fundação Altino Ventura


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