Open Access Peer-Reviewed
Editorial

Conjuntivite presumível por Acanthamoeba

Conjunctivitis presumably due to Acanthamoeba

Ana Cristina de Carvalho Ruthes1; Sâmia Wahab2; Najua Wahab2; Hamilton Moreira1; Luciane Moreira2

DOI: 10.1590/S0004-27492004000600010

RESUMO

OBJETIVO: Abordar quatro casos de conjuntivite presumível por Acanthamoeba, descrevendo o diagnóstico, considerando sinais e sintomas e o tratamento instituído. MÉTODOS: Foram estudados casos de conjuntivite presumível por Acanthamoeba diagnosticados no Hospital de Olhos do Paraná (HOP), no período de setembro/1998 a janeiro/2002. Todos os olhos estudados foram submetidos a um protocolo de investigação que incluía exame oftalmológico completo, microbiologia e cultura de secreções conjuntivais. RESULTADOS: Os exames laboratoriais de microscopia e cultura do material colhido estes pacientes revelaram o diagnóstico de Acanthamoeba. A maioria dos pacientes referia olhos vermelhos e irritação ocular de longa data. Os autores encontraram correlação entre a cultura e o exame direto, em que se evidenciou a presença de cistos e trofozoítas do protozoário. CONCLUSÃO: Este é o primeiro relato de conjuntivite provavelmente por Acanthamoeba de acordo com a literatura revisada. Pacientes selecionados e refratários ao tratamento habitual de infecção ocular externa devem ser considerados para estudo laboratorial adequado à procura etiológica da doença.

Descritores: Conjuntivite; Conjuntivite; Acanthamoeba

ABSTRACT

PURPOSE: To describe four cases of conjunctivitis presumably due to Acanthamoeba considering diagnosis, signs, symptoms and treatment. METHODS: We reviewed the medical records of all patients who presented a clinical diagnosis of Acanthamoeba conjunctivitis between September/1998 to January/2001 at the "Hospital de Olhos do Paraná (HOP)". All eyes were submitted to a protocol of investigation that included ophthalmologic examination, microscopic examination and culture exams of conjunctival smears for adequate treatment. RESULTS: The laboratorial results of conjunctival smears revealed contamination with Acanthamoeba by direct examination and thereafter, confirmed by culture. The authors observed cysts and trophozoites of Acanthamoeba. CONCLUSION: This is the first report of conjunctivitis presumably due to according to Acanthamoeba the reviewed literature. Selected patients refractory to clinical treatment should undergo laboratorial screening to identify the etiologic agent and adequate treatment.

Keywords: Conjunctivitis; Conjunctivitis; Acanthamoeba


 

 

INTRODUÇÃO

Acanthamoeba é uma ameba de vida livre presente comumente no solo, água fresca, piscinas, banheiras e água salgada. Pode ser, inclusive, isolada e cultivada na nasofaringe de indivíduos sadios. É conhecida no meio oftalmológico como um importante agente etiológico de ceratite infecciosa capaz de causar severa inflamação ocular e diminuição da acuidade visual em indivíduos hígidos, especialmente em usuários de lentes de contato(1-2).

Os primeiros relatos de ceratite por Acanthamoeba surgiram em 1973 e, a partir da década de 80, seu diagnóstico tornou-se cada vez mais difundido, tendo como principais fatores de risco associados o uso de lentes de contato, de água ou solução das lentes de contato contaminadas e o trauma corneano(3).

Contudo, após revisão da literatura não se encontrou descrição de acometimento somente conjuntival por este protozoário. Em sua grande maioria os casos registrados compreendem ceratites ou ceratoconjuntivites, manifestando-se por dor intensa, fotofobia, diminuição da visão e lacrimejamento que são concomitantes aos achados biomicroscópicos de limbite, infiltrados estromais e, mais raramente, esclerite(4-6).

 

OBJETIVO

Abordar os casos de conjuntivite presumível por Acanthamoeba, descrevendo o método diagnóstico, considerando os sinais e sintomas encontrados nestes pacientes e discutindo a conduta terapêutica adotada.

 

MÉTODOS

No período de setembro de 1998 a janeiro de 2002 foi encontrado no Serviço do Hospital de Olhos do Paraná (HOP) registro de quatro casos de conjuntivite unilateral por protozoário, em pacientes hígidos, com história pregressa de conjuntivite crônica.

Metade dos pacientes eram usuários de lentes de contato (LC) e somente um deles possuía conjuntivite alérgica como patologia ocular prévia.

Ao serem admitidos no Serviço, referiam irritação ocular de longa data, que os limitava em suas atividades diárias, embora não houvesse acometimento da acuidade visual.

Todos haviam iniciado tratamento para conjuntivite bacteriana várias vezes e, na ausência de resposta, descontinuaram o uso da medicação prescrita.

Procedeu-se exame oftalmológico completo, onde à biomicroscopia realizou-se coleta de material de ambos os olhos de cada paciente, conforme cuidados necessários para a obtenção de amostra adequada e isenta de contaminação. Em seguida, fez-se pesquisa de microorganismos atendendo-se ao protocolo de investigação estabelecido pela equipe de oftalmologistas em conjunto com o laboratório do HOP. O protocolo consiste na realização dos seguintes exames: 1º) microscopia (exame a fresco, coloração de Gram e Giemsa, PAS (ácido periódico de Schiff), Papanicolau, Ziehl-Nielsen e TB-colour); 2º) imunofluorescência para clamídia; 3º) cultura para bactérias aeróbias e anaeróbias, bactérias facultativas, fungos e microbactérias; 4º) identificação.

As amostras submetidas ao exame microscópico e à cultura foram colhidas das LC, da conjuntiva tarsal superior, inferior e do fundo de saco conjuntival, sob anestesia tópica, com espátula de Kimura.

A cultura realizada por plaqueamento direto em meio Ágar sem nutriente com cepa padrão de E. coli ou Enterobacter foi determinada positiva ou negativa de acordo com a presença de protozoário. Para a sua realização foram respeitadas normas de incubação nas temperaturas recomendadas pela NCCLS (National Committee for Clinical Laboratory Standards).

As colorações utilizadas foram branco calco-fluor, tricrome (Merk®), PAS (Merk®), Gram e Giemsa.

Todos os resultados positivos para protozoário, sejam por microscopia ou cultura, foram avaliados no laboratório de microbiologia do HOP.

Instituiu-se tratamento específico com colírios Biguanida 0,02% de 6/6 h e Isotionato de propamidina 0,1% (Brolene®) de 4/4 h para os quatro pacientes. Dois deles foram ainda medicados com corticóide tópico (dexametasona 0,01%) de 6/6 h, o primeiro, e gentamicina colírio (40 mg/ml) a cada 3 horas, o segundo.

Após três dias de tratamento, os pacientes foram reexaminados e orientados quanto aos ajustes de intervalo das medicações e à necessidade de retornar às consultas.

Os quatro casos foram acompanhados até que fossem considerados curados. O critério instituído para a alta baseou-se no exame clínico e controle laboratorial a cada 4-6 meses, repetido três vezes.

 

RESULTADOS

Conforme se observa na tabela 1, a paciente 1 com história de conjuntivite alérgica prévia, apresentou ao exame biomicroscópico, folículos em pequena quantidade e moderada hiperemia conjuntival. Tendo em vista que a mesma referia prurido após ter iniciado tratamento específico para protozoário, optou-se por associar dexametasona 0,01% colírio de 6/6 h.

 

 

Conforme resultado laboratorial houve presença de protozoário e bactéria Gram negativa no exame do paciente 3. Por este motivo, além do tratamento específico, acrescentou-se colírio de gentamicina (40 mg/ml) a cada 3 horas. O uso da gentamicina foi continuado durante dez dias.

Ao exame oftalmológico não havia qualquer alteração, exceto conjuntival, nos olhos examinados. Observou-se um padrão de semelhança nas conjuntivas tarsais destes pacientes, caracterizado por um aspecto de espessamento e hiperemia difusa.

Ao exame microbiológico encontrou-se presença de protozoário nas lentes de contato, no exame a fresco com branco calco-fluor e nas lâminas com colorações habituais. O laudo ainda relatava reação leucocitária, com presença de eosinófilos em todas as amostras.

Nos quatro pacientes houve concordância dos achados de trofozoítas móveis à pesquisa e cultura positiva.

Após o diagnóstico etiológico e o início do tratamento específico, observou-se importante melhora clínica, fato que se confirmou com a negativação dos exames laboratoriais.

 

DISCUSSÃO

Nos últimos anos, principalmente pela disseminação do uso de lentes de contato e maior facilidade e disponibilidade ao manuseio destas, tem se tornado freqüente os casos de afecção ocular por Acanthamoeba. Neste sentido, paralelamente, o número de pesquisas tem sido maior sobre o assunto(7-10).

Diante de casos de conjuntivite com diferente evolução e resistência ao tratamento habitual, os autores optaram por realizar coleta de material conjuntival, atendendo ao protocolo já descrito. Este procedimento permitiu que se chegasse ao diagnóstico de conjuntivite presumível por Acanthamoeba, entidade clínica sem relatos na literatura.

A presença de protozoário se deu na vigência de mucosa conjuntival íntegra, o que salienta a possibilidade desta doença ocorrer sem que haja quebra da barreira mecânica; simplesmente por suscetibilidade de determinados pacientes à infecção por protozoário ou por algum efeito de interferência na imunidade destes indivíduos.

A paciente 1 tratada com dexametasona 0,01% colírio em associação à terapêutica antiprotozoário, evoluiu com melhora do prurido ocular e dos sinais clínicos de alergia e inflamação. Embora seja controverso o uso de corticosteróides em casos de ceratite por Acanthamoeba, neste estudo, em que a paciente em questão apresentava apenas conjuntivite, observou-se melhora significativa(7-9,11).

O paciente 3 referia prática de tênis, semanalmente, eventualmente seguida por banhos de piscina em clube. Ao ser indagado sobre uso de LC negou em qualquer ocasião. Sabendo-se que a Acanthamoeba consiste em um microorganismo com predileção por sobreviver em água, inclusive água tratada, especula-se que de alguma forma a prática esportiva possa ter propiciado a contaminação ocular pelo protozoário.

Sabe-se que fatores predisponentes como uso inapropriado das soluções de limpeza das LC, a prática de esportes aquáticos associada ao uso de LC e o trauma ocular estão envolvidos com o acometimento corneano por Acanthamoeba. Desta forma, estes pacientes com cistos e trofozoítas móveis presentes em suas conjuntivas estariam ainda mais susceptíveis a ceratite, caso houvesse o menor sinal de desepitelização corneana(12-14).

O diagnóstico precoce, possibilitado pela coleta de secreção e raspado conjuntival, permitiu a instituição do tratamento adequado, diminuindo o risco de uma infecção ocular mais importante, capaz de comprometer a acuidade visual destes pacientes.

 

CONCLUSÃO

A importância deste estudo consiste no fato de se tratar de pacientes hígidos com uma doença ocular crônica, limitante de sua qualidade de vida há vários meses, até então sem etiologia definida.

O fato de o tratamento instituído ter sido eficaz na resolução destes quatro casos de conjuntivite presumível por Acanthamoeba não elimina a necessidade de maiores estudos no sentido de se determinar o melhor e menos tóxico medicamento para casos de doença ocular externa por este protozoário.

Diante de infecções oculares que se apresentam de forma clínica atípica ou resistente ao tratamento habitual, é sempre importante considerar a pesquisa laboratorial como coadjuvante no exame oftalmológico.

Especialmente com a organização do protocolo de investigação laboratorial instituído pelos autores, houve maior facilidade na descoberta desta conjuntivite, o que possibilitou não só o beneficiamento destes pacientes crônicos como também um enorme aprendizado para a equipe.

 

AGRADECIMENTOS

Gostaríamos de prestar nossos sinceros agradecimentos à microbiologista Najua Wahab, responsável pelos exames laboratoriais deste trabalho, durante o período em que esteve no Serviço de Microbiologia do Hospital de Olhos do Paraná.

 

REFERÊNCIAS

1. Nishiwaki-Dantas MC, Dantas PEC. Atualização no diagnóstico e tratamento da ceratite por Acanthamoeba. Sinopse Oftalmol [serial on the Internet]. 1999 nov [citado 2003 mar 10]; 99 (2): [cerca de 6 p.]. Disponível em: http://www.cibersaude.com.br/revistas.asp?fase=r003&id_materia=1248         

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Endereço para correspondência
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E-mail: [email protected]

Recebido para publicação em 31.03.2003
Versão revisada recebida em 29.06.2004
Aprovação em 30.06.2004

 

 

Trabalho realizado no Hospital de Olhos do Paraná.
Nota Editorial: Pela análise deste trabalho e por sua anuência na divulgação desta nota, agradecemos ao Dr. Fábio Henrique Cacho Casanova.


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