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Editorial

Aspectos psicológicos das crianças com glaucoma do desenvolvimento

Psychological aspects of children with developmental glaucoma

Carla Ferracina1; Adriana Maria Rodrigues2; Ricardo Belfort3; Paulo Augusto de Arruda Mello1

DOI: 10.1590/S0004-27492004000600003

RESUMO

OBJETIVO: Avaliar as seguintes características psicológicas de crianças portadoras de glaucoma de desenvolvimento: imaturidade, ansiedade, dependência e sociabilização. MÉTODO: Foram avaliadas 15 crianças com glaucoma do desenvolvimento pertencentes ao ambulatório do Glaucoma Congênito e 15 crianças sem nenhum problema visual pelo teste projetivo do desenho livre. RESULTADOS: No grupo de estudo, 66,6% das crianças glaucomatosas se mostraram imaturas, 86,6% eram ansiosas, 73,3% eram dependentes e 80% apresentaram dificuldades em sociabilização. No grupo controle 46,6% das crianças sem problemas visuais eram imaturas, 40% eram ansiosas, 40% eram dependentes e 33,3% apresentaram dificuldades em sociabilização. CONCLUSÃO: Observou-se que as crianças com glaucoma do desenvolvimento são mais imaturas, mais ansiosas, mais dependentes e se sociabilizam menos em comparação às crianças que não apresentam problemas visuais.

Descritores: Glaucoma; Psicologia da criança; Comportamento infantil; Criança; Estudos de casos e controles

ABSTRACT

PURPOSE: To evaluate the following psychological aspects of children with developmental glaucoma: immaturity, anxiety, dependence and sociability. METHODS: Fifteen children with developmental glaucoma from the Congenital Glaucoma department and fifteen children without any visual problem were evaluated through the projective technique of free drawing. RESULTS: In the group of children with glaucoma, 66.6% were immature, 86.6% were anxious, 73.3% were dependent and 80% had difficulties in sociability. In the control group, 46.6% were immature, 40% were anxious, 40% were dependent and 33.3% had difficulties in sociability. CONCLUSION: Children with glaucoma were considered more immature, more anxious, more dependent and less sociable than children without any visual problem.

Keywords: Glaucoma; Child psychology; Child behavior; Child; Case-control studies


 

 

INTRODUÇÃO

O glaucoma congênito é uma doença crônica que acomete crianças nas fases iniciais de desenvolvimento e que, muitas vezes, pode levar a alterações anatômicas e funcionais severas evoluindo para um comprometimento permanente da visão(1).

A visão é um importante meio para o desenvolvimento emocional e psicológico da criança. Fraiberg(2-3) observou que os bebês com problemas visuais começam a sorrir mais ou menos com a mesma idade que os bebês normais (em torno de 4 semanas), mas com menos freqüência. O sorriso é menos intenso e mais fugaz. Estes bebês dificilmente fazem a troca mútua de olhar com os pais, o que é considerado um vínculo inicial muito forte e importante para o desenvolvimento emocional adequado.

Assim como em outras doenças crônicas, o desenvolvimento emocional e psicológico de pacientes portadores de glaucoma tem sido motivo de vários estudos. Demours(4) demonstrou a influência psicológica que o desenvolvimento do glaucoma pode ter sobre o adulto; inclusive até existem alguns autores, que têm considerado o glaucoma uma desordem psicossomática(5-6). As principais características psicológicas encontradas em adultos com glaucoma são ansiedade e uma tendência à depressão(7). Para crianças portadoras de glaucoma, não existem estudos que mostrem suas características psicológicas.

O objetivo deste estudo foi avaliar as seguintes características psicológicas de crianças portadoras de glaucoma do desenvolvimento (GD) a partir do nascimento, através do teste projetivo do desenho livre: nível de imaturidade, de ansiedade, de dependência e de sociabilização.

 

MÉTODOS

Foram avaliadas 15 crianças pertencentes ao ambulatório do glaucoma congênito da Escola Paulista de Medicina. No grupo de estudo (GE) os critérios de inclusão foram: diagnóstico de glaucoma congênito, com idade entre 5 e 11 anos e acuidade visual igual ou melhor que 20/60. Foram excluídas crianças com alterações sistêmicas. No grupo controle (GC) foram incluídas 15 crianças sem alteração visual, com a mesma faixa etária, acuidade visual igual a 20/20 oriundas do mesmo ambiente sócio-familiar (pacientes de baixa renda) que as crianças do GE.

No GE a idade média das crianças era de 7,4 anos ±1,6, em relação ao sexo, 7 eram meninos (46,6%) e 8 eram meninas (53,3%). A raça caracterizou-se por 10 brancos (66,6%), 3 pardos (20%) e 2 negros (13,3%). A média do número de cirurgias foi de 2,1±0,7. O número médio de medicações indicadas foi de 1,2±0,8.

No GC a idade média das crianças era de 8,3 anos ±1,6, em relação ao sexo a amostra foi de 6 meninos (40%) e 9 meninas (60%). A raça das crianças se dividiu em 8 brancos (53,3%), 4 pardos (26,6%) e 3 negros (20%).

Após a assinatura do termo de consentimento e coleta dos dados de identificação, foi aplicado nas crianças um teste projetivo, o teste do desenho livre. Tal teste foi aplicado nas crianças com glaucoma antes da consulta oftalmológica, em uma sala em anexo ao ambulatório com a presença somente da aplicadora, sem a interferência dos médicos ou dos pais das crianças. No teste do desenho livre é dado a criança o seguinte material: folhas de papel em branco sem pauta, tamanho ofício, lápis preto nº 2 e lápis de cor. A instrução dada a criança é de que ela faça o desenho que quiser. O desenho foi avaliado por um examinador mascarado, ele não sabia a qual grupo pertencia a criança.

O teste do desenho livre, que é um meio menos usual de comunicação do que a linguagem, tem um conteúdo simbólico, no qual a criança faz a projeção da personalidade, possibilitando a manifestação mais direta de aspectos mais profundos e inconscientes(8). A expressão gráfica é considerada por muitos como menos passível de controle do que a verbal. Sabe-se que o traçado das figuras dá acesso a estratos básicos e que constituem expressão menos controlada da personalidade do sujeito(8).

Através do desenho livre foram avaliadas características psicológicas como: imaturidade, ansiedade, dependência e sociabilização, sendo que a mesma criança poderia apresentar mais de um traço de personalidade que eram expressadas em um único desenho. Caso fosse observado tal traço, este seria contabilizado como presente (positiva), como pode ser observado na tabela 1. Tais características psicológicas são definidas como:

  • Imaturidade é a incapacidade do indivíduo comportar-se no tocante as suas motivações e emoções, de acordo com o que se é usual e esperado em sua idade(9).
  • Ansiedade: é um estado afetivo desagradável, caracterizado por inquietude e uma sensação de perigo eminente(10).
  • Dependência: é o grau em que os membros de um grupo social se apóiam mutuamente para formarem suas idéias sobre a realidade social(9).
  • Dificuldades em socialização: é o processo por cujo intermédio uma criança adquire sensibilidade aos estímulos sociais, às pressões e obrigações da vida no grupo social, e aprende a comportar-se como os outros membros de sua cultura(9).

 

 

RESULTADOS

O aspecto imaturidade foi observado em 66,6% do grupo de estudo e em 46,6% no grupo controle.

O aspecto ansiedade foi demonstrado em 86,6% das crianças com glaucoma e em 40% nas crianças do grupo controle.

A dependência foi observada em 73,3% no grupo de estudo e em 40% do grupo controle.

No que diz respeito a sociabilização, 80% das crianças glaucomatosas apresentaram dificuldade no relacionamento inter-relação social contra 33,3% no grupo controle.

A tabela 1 mostra os aspectos da personalidade das crianças com glaucoma de desenvolvimento.

 

DISCUSSÃO

Através dos sentidos nos relacionamos com o mundo. A visão é o principal sentido do ser humano, nos proporcionando mais de 80% das informações que nos chegam(11). O olho pode ser considerado o principal instrumento de controle sobre o ambiente, como também o veículo de relacionamento com os outros e com a realidade. Segundo Spinelli, a psicanálise e a prática clínica reconhecem a importância do olhar e de ser olhado, como o olhar da mãe no qual o bebê reconhece a si mesmo, a base de formação da identidade(7). A possibilidade de ver nos permite conhecer o mundo e o outro, criando vínculos e proporcionando a chance de manter tudo sob controle.

No presente estudo, a ansiedade é percebida no teste projetivo do desenho livre principalmente através das linhas retas, bem marcadas e angulosas, mas também se manifesta pela necessidade de preencher toda folha(12). Observou-se que 86,6% das crianças glaucomatosas mostraram-se ansiosas e no grupo controle, somente 40%. Tal fato pode estar relacionado com a dificuldade de interação que as crianças têm com o mundo, devido à condição de apresentar uma visão reduzida.

Spinelli também refere que em adultos portadores de glaucoma, uma das principais características psicológicas desses pacientes era a ansiedade, mostrando uma tendência à depressão(7).

No estudo sobre a personalidade de pacientes glaucomatosos, que utiliza o teste de personalidade Rorschach, aonde muitos pacientes, entre 40 a 60 anos e com o diagnóstico de glaucoma de ângulo aberto, os autores notaram na maioria das pranchas a presença de numerosos olhos, nos quais os pacientes reportaram a sensação de serem constantemente observados, uma manifestação de uma tendência que leva a uma síndrome persecutória(7). No presente estudo acontece algo similar. Apesar do teste de Rorschach, utilizado no estudo de Spinelli(7) ser um método de avaliação de personalidade diferente do desenho livre, e das crianças glaucomatosas, pertencerem a uma faixa etária diferente dos pacientes avaliados por Spinelli, as crianças tendem a desenhar figuras humanas com olhos grandes e geralmente sem pupila, ou olhos fechados, que podem estar expressando a perda da visão. No grupo controle tal fato não ocorre.

No teste projetivo do desenho livre, pode-se observar que a maioria dos desenhos das crianças glaucomatosas apresentava como tema a figura humana. Curiosamente, nestes desenhos de figura humana foram observados muitos dos aspectos observados em um outro estudo com glaucomatosos. No estudo de Berger, ele utiliza o teste projetivo da figura humana para avaliar os fatores emocionais em adultos glaucomatosos observando: presença de mutilação de algum membro, tamanho desproporcional de algum membro, ausência de traços faciais, ausência de olhos, somente um olho ou olhos exagerados. No grupo controle não foram verificados tais aspectos(13).

Durante o desenvolvimento emocional da criança, ela passa por um estágio de sociabilidade no qual ela começa a experimentar sua autonomia e testar seus limites. Ela aprende a andar, falar, controlar suas necessidades fisiológicas e durante esse estágio de grandes explorações, ela aprende com suas inúmeras tentativas, assim como deve aprender a se ajustar às demandas de sociabilização.

No teste do desenho livre, a dificuldade em sociabilização é observada especialmente através de figuras humanas que são desenhadas isoladamente(12). No grupo de estudo, 80% das crianças glaucomatosas apresentam dificuldade na inter-relação social, contra 33,3% no grupo controle.

No processo de desenvolvimento emocional da criança, o efeito do glaucoma, causando redução da acuidade visual, talvez seja mais afetado no que diz respeito ao desenvolvimento da confiança e autonomia. Crianças que foram hospitalizadas para serem submetidas a cirurgias ou exames sob narcose para medir a pressão intra-ocular vão experimentar a ruptura da rotina familiar, a separação dos pais, procedimentos médicos dolorosos e contato com inúmeros estranhos.

O desenvolvimento de confiança na infância depende de experiências iniciais que são satisfatórias. Quando a criança está com fome, ela é alimentada, quando a criança está molhada, ela é trocada, se as necessidades básicas são preenchidas, tais experiências contribuem com que o mundo seja um lugar seguro, mas isto é muito difícil ocorrer quando se está num ambiente hospitalar. A criança ainda não entende o conceito de tempo e cinco minutos pode representar para ela cinco horas. O medo da separação dos pais pode aumentar a ansiedade da criança tal como é visto no presente estudo. A necessidade de explorar e praticar novas habilidades motoras pode ser diminuída talvez pelo fato dos pais protegerem demasiadamente e fazerem tudo pela criança, tolhendo as tentativas de emancipação da criança, tornando-a dependente.

No teste do desenho livre, a falta de independência pode ser notada principalmente através dos desenhos bem grandes, de proporções exageradas(12). No presente estudo foi observado a necessidade de dependência em 73,3% no grupo de estudo e em 40% no grupo controle.

Para Bee, quando a criança é colocada numa situação para a qual não está pronta, ela simplesmente responde sendo desatenta, apresentando falta de interesse nas coisas e falta de persistência(14). Na criança imatura, o desenvolvimento geral é simplesmente mais lento. Muitas vezes a imaturidade é encorajada por tipos específicos de práticas educativas, como pode ser no caso das crianças glaucomatosas.

No teste do desenho livre, a imaturidade pode ser notada principalmente através da necessidade de simetria exagerada(12). Tal aspecto foi observado em 66,6% do grupo de estudo e 46,6% no grupo controle.

É interessante notar que pacientes portadores de glaucoma há mais de 10 anos tendem a ter dificuldade na obediência terapêutica, apresentando um nível de estresse mais severo e evocam mecanismos de defesas, com mais freqüência que portadores de glaucomas que descobriram sua doença mais recentemente(4). No presente estudo, não existiu a preocupação em avaliar o nível de fidelidade dos pacientes ao tratamento, já que nessa idade tal responsabilidade pertence aos pais.

Alguns estudos demonstraram que pacientes com glaucoma mostravam uma estabilidade emocional reduzida, depressão e muitos sintomas psicossomáticos(15) enquanto em outros estudos os pacientes glaucomatosos mostraram-se neuróticos, com comportamento psicossomático(16).

As características psicológicas verificadas no presente estudo, podem provavelmente ser observadas em outras crianças com problemas visuais crônicos e com diminuição da visão, não sendo apanágio das crianças com glaucoma congênito. Também deve ser levado em consideração o fato do glaucoma do desenvolvimento ser uma doença que necessita de um segmento contínuo e assim o seu tratamento poder apresentar dificuldades. É importante considerar que tais dificuldades também podem contribuir para as características psicológicas das crianças glaucomatosas verificadas neste estudo. Outra limitação do estudo que deve ser levada em consideração é o tamanho da amostra. Salientamos também que as características sócio-familiares dos dois grupos eram similares.

Como já se foi verificado, alguns pacientes que fazem uso de beta-bloqueadores tendem a apresentar traços de depressão(17), mas neste estudo nenhuma criança fazia uso de tal tipo de medicamento. Também é importante salientar que o teste do desenho livre foi aplicado no mesmo dia que a consulta oftalmológica das crianças, e possivelmente tal fato já poderia ser suficiente para causar ansiedade para crianças com qualquer doença crônica que requeiram visitas freqüentes a hospitais, contudo, as crianças foram avaliadas antes de serem examinadas pelo médico, minimizando qualquer ansiedade causada pela presença do médico que muitas vezes pode ocorrer.

 

CONCLUSÃO

Observou-se que as crianças portadoras de glaucoma de desenvolvimento avaliadas pelo teste projetivo do desenho livre são mais imaturas, mais ansiosas, mais dependentes e se sociabilizam menos, em comparação às crianças do grupo controle. Tais aspectos psicológicos podem não ser características apenas dos portadores de glaucoma congênito. Sendo a visão um importante vínculo com o meio, é uma maneira de controle do ambiente e, as crianças glaucomatosas por terem baixa visão sentem-se mais fragilizadas, com a estrutura da personalidade sendo afetada por isto.

 

REFERÊNCIAS

1. Shields MB. Textbook of glaucoma. Baltimore: Williams & Wilkins; 1997.         

2. Fraiberg S, Freedman DA. Studies in the ego development of the congenitially blind child. Psychoanal Study Child. 1964;19:113-69         

3. Fraiberg S. Insights from the blind. Corporative studies of blind and sighted infants. New York: Basic Books;1977.         

4. Demours AP. Traité des maladies des yeux. Paris, 1818, p.470. apud Duke-Elder WS. Textbook of ophthalmology. St. Louis: Mosby; 1941. p.3339.         

5. Miller SJ. Symptomatology of congestive and simple glaucoma; a study in contrast. Br Med J. 1952;1(4756):456-61.         

6. Piers G. "Glaucoma". In: Alexander FG, French TM. Studies in psychosomatic medicine. New York: Ronald Press; 1948. p.555-6.         

7. Spinelli D, Faroni E, Castellini G. The "personality" of the glaucomatous patient: preliminary results. Acta Ophtalmol Scand Suppl. 1998;(227):53-4.         

8. Ocampo MLS e col. O processo psicodiagnóstico e as técnicas projetivas. São Paulo: Martins Fontes; 1979.         

9. Cabral A. Dicionário técnico de psicologia. São Paulo: Cultrix; 1995.         

10. Kaplan HI, Sadock BJ, Grebb JA. Compêndio de psiquiatria: ciências do comportamento e psiquiatria clínica. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997.         

11. Louzada N. Perigo à vista. J Oftalmol Jota Zero. 2003;16(89):31.         

12. van Kolck OL. Testes projetivos gráficos no diagnóstico psicológico. São Paulo: Epu;1982.         

13. Berger AS, Zimet CN. Personality features of patients with primary glaucoma. A medico psychological exploration. Psychosom Med. 1959;21:389-96.         

14. Bee HL. Criança em desenvolvimento. 3 ed. São Paulo, Harbra, 1984.         

15. Erb C, Thiel HJ, Flammer J. The psychology of the glaucoma patient. Curr Opin Ophthalmol. 1998;9(2):65-70.         Review.

16. Holtmman HW. [Experimental investigations on personality of glaucoma patients]. Klin Monatsbl Augenheilkd. 1974;165(4):604-10. Germany         

17. Duch S, Duch C, Pastó L, Ferrer P. Changes in depressive status associated with topical beta-blockers. Int Ophthalmol. 1992;16(4-5):331-5.        

 

 

Endereço para correspondência
Carla Ferracina
Rua Marechal Hermes da Fonseca, 616/13
São Paulo (SP) CEP 02020-001
E-mail: [email protected]

Recebido para publicação em 26.06.2003
Versão revisada recebida em 20.05.2004
Aprovação em 28.06.2004

 

 

Trabalho realizado no setor de Glaucoma Congênito do Departamento de Oftalmologia da Universidade Federal de São Paulo.


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