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Editorial

Meduloepitelioma teratóide da retina: relato de caso

Teratoid medulloepithelioma of the retina: case report

Ramon Coral Ghanem1; João França Lopes1; Fernando Korn Malerbi1; Ruth Miyuki Santo2; Walter Takahashi3

DOI: 10.1590/S0004-27492004000300027

RESUMO

O meduloepitelioma é um tumor intra-ocular congênito originário do epitélio medular primitivo que, por sua vez, é responsável pela formação do epitélio não pigmentado do corpo ciliar. Ocorre geralmente na infância, de forma unilateral, acometendo o corpo ciliar. O objetivo deste trabalho é documentar um caso raro de meduloepitelioma teratóide originário da retina. Paciente de nove anos, feminina, apresentava baixa acuidade visual (AV), estrabismo e leucocoria no olho esquerdo (OE). A AV era de 1,0 no olho direito e movimentos de mão no OE. Foi observada tumoração retrocristaliniana branco-acinzentada no OE, aparentemente subretiniana, vascularizada, de grande extensão, com alterações císticas na sua superfície. Foram realizadas tomografia de crânio e órbitas e ecografia ocular. A paciente foi submetida à enucleação com suspeita clínica de retinoblastoma. Pelo aspecto histopatológico foi feito o diagnóstico de meduloepitelioma teratóide benigno originário da retina. Na maioria dos casos apresentados na literatura o meduloepitelioma tem origem a partir do epitélio não pigmentado do corpo ciliar. No nosso caso, a neoplasia parece ter tido origem a partir da retina, já que os cortes revelaram epitélio do corpo ciliar preservado e não foi reconhecida a estrutura normal da retina. Embora o tumor apresentado neste relato tenha sido classificado como benigno, o fato de ser lesão de grandes proporções e de crescimento aparentemente recente, justifica a conduta cirúrgica empregada. O tratamento do meduloepitelioma deve objetivar a intervenção cirúrgica precoce, na tentativa de se evitar a disseminação extra-ocular.

Descritores: Tumores neuroectodérmicos primitivos; Teratoma; Neoplasias da retina; Retinoblastoma; Criança; Feminino

ABSTRACT

Medulloepithelioma is a congenital intraocular tumor that usually arises from the primitive medullary epithelium that is destined to form the nonpigmented ciliary epithelium of the ciliary body. It occurs most frequently in early childhood and is unilateral. This report documents a rare case of teratoid medulloepithelioma arising from the retina in a 9-year-old child. Gradual decrease in visual acuity (VA), strabismus and leukocoria in the left eye (LE) were observed in a 9-year-old girl. VA was 1.0 in the right eye (RE) and hand movement in the LE. Examination revealed a yellowish tumor in the retrolenticular space, apparently subretinal, vascularized, with cystic changes on its surface. Right eye was normal. Brain and orbital tomography was performed, and ocular ultrasonogram was obtained. The clinical diagnosis was retinoblastoma and the eye was enucleated. Histopathologic examination showed a benign teratoid medulloepithelioma arising from the retina. Most previously reported cases described medulloepitheliomas arising from the ciliary body. In our case, however, the tumor seemed to arise from the retina because on histopathology the ciliary body was preserved and the retina structure was not identified. Although the tumor presented was classified as benign, the fact that it is an extensive lesion with apparent recent growth justifies enucleation. The main objective of treatment is early total excision to avoid extraocular spread of the tumor.

Keywords: Neuroectodermal tumors, primitive; Teratoma; Retinal neoplasms; Retinoblastoma; Child; Female


 

 

INTRODUÇÃO

O meduloepitelioma é um tumor intra-ocular congênito, originário do epitélio medular primitivo que, por sua vez, é responsável pela formação do epitélio não pigmentado do corpo ciliar(1). Este raro tumor ocular teve sua primeira descrição histológica detalhada feita por Voerhoeff(2) em 1904. Em 1931, Grinker propôs o termo meduloepitelioma, denominação esta mais utilizada modernamente(3). Seu aparecimento, na grande maioria das vezes, ocorre na infância, de forma unilateral. Acomete mais freqüentemente o corpo ciliar, embora tenham sido descritos casos de meduloepiteliomas da retina e do nervo óptico(4-7).

O objetivo deste trabalho é documentar um caso raro de meduloepitelioma teratóide originário da retina em uma criança de 9 anos, que teve seu olho esquerdo enucleado por hipótese clínica de retinoblastoma, e discutir os principais sinais clínicos que permitem o diagnóstico diferencial entre essas lesões.

 

RELATO DE CASO

Paciente de 9 anos, feminina, branca, procurou atendimento no Pronto Socorro do Hospital das Clínicas de São Paulo referindo baixa acuidade visual (AV) progressiva no olho esquerdo (OE) com início há cerca de 6 meses; estrabismo desde o começo do quadro e aparência esbranquiçada da pupila (leucocoria) há 2 meses. Não apresentava história de olho vermelho ou dor ocular. Negava quaisquer antecedentes sistêmicos, traumáticos ou doenças oculares prévias. Os antecedentes pessoais, gestacionais e familiares nada revelavam.

A AV era de 1,0 no olho direito (OD) e movimento de mãos no OE. Ao exame externo observava-se leucocoria e esotropia do OE. O exame biomicroscópico revelava sinéquias posteriores na região inferior da pupila e uma tumoração retrocristaliniana branco-acinzentada, aparentemente subretiniana, vascularizada, de grande extensão, com alterações císticas na sua superfície (Figura 1). A pressão intra-ocular era de 10 mmHg no OE e não havia restrições à movimentação ocular. O exame do OD era normal.

 

 

Avaliação clínica e laboratorial detalhada não mostrou alterações, além de sorologia positiva (Ig M = 1/40) para toxocaríase. A tomografia computadorizada de crânio e órbitas evidenciou lesão intra-ocular bem delimitada, de aspecto heterogêneo, impregnando-se pelo contraste, de cerca de 15 mm situada na região inferior nasal do globo ocular esquerdo (Figura 2). A ultra-sonografia mostrou uma massa intra-ocular sólida na cavidade vítrea com interior de média refletividade e picos de alta refletividade sugerindo pontos de calcificação (Figura 3). Foram feitas as hipóteses diagnósticas de retinoblastoma, membrana ciclítica por toxocaríase e doença de Coats, além de persistência de vítreo primário hiperplásico e meduloepitelioma intra-ocular.

 

 

 

 

A paciente foi encaminhada, 4 meses após a admissão no serviço, para enucleação, com suspeita clínica de retinoblastoma.

A enucleação foi realizada sem intercorrências, com implante de uma esfera de hidroxiapatita na cavidade. A recuperação pós-operatória foi excelente, com adaptação de uma prótese ocular 3 meses após.

 

ACHADOS HISTOPATOLÓGICOS

O olho enucleado foi seccionado no plano horizontal e os cortes revelaram uma massa de grandes proporções, com 1,8 cm no maior eixo, com áreas mescladas de cor branca e acastanhada, ocupando a cavidade vítrea até a região retrocristaliniana (Figura 4). Ao exame microscópico observou-se uma neoplasia com aspectos histopatológicos variados. Foi observada a presença de cordões e estruturas tubulares formados por epitélio com quantidades variáveis de pigmento no citoplasma em meio a uma matriz mixomatosa (Figura 5). Foram observadas áreas de diferenciação cartilaginosa e presença de células fusiformes que, pelo exame imunohistoquímico, mostraram-se positivas para actina de músculo liso e alguns focos de calcificação. Os cortes mostraram que o epitélio não pigmentado do corpo ciliar estava preservado (Figura 6). Por outro lado, não foi identificada a estrutura normal da retina. Não foi observado comprometimento do nervo óptico ou da coróide. Também não foram reconhecidas formações de rosetas ou áreas de transformação sarcomatosa. Apesar de terem sido reconhecidas áreas císticas ao exame clínico, estas não foram detectadas ao exame anatomopatológico. Diante do aspecto histopatológico foi feito o diagnóstico de meduloepitelioma teratóide benigno, de provável origem na retina.

 

 

 

 

 

 

DISCUSSÃO

Os meduloepiteliomas são os tumores congênitos do epitélio ciliar mais comuns, mas são muito menos comuns que o retinoblastoma. São geralmente unilaterais e não apresentam predominância por sexo ou raça(7).

Zimmerman em 1971 classificou os meduloepiteliomas em não-teratóides e teratóides, podendo apresentar formas benignas e malignas(1). A variedade não teratóide consiste em uma proliferação de células bem diferenciadas não pigmentadas do epitélio ciliar. Já os tumores teratóides são aqueles que contém outros tecidos, como: cérebro, músculo esquelético e cartilagem. Os critérios histológicos de malignidade utilizados atualmente foram descritos por Broughton e Zimmerman(7) e consistem em um ou mais dos seguintes: (1) áreas de células neuroblásticas pouco diferenciadas, (2) pleomorfismo nuclear ou aumento de atividade mitótica, (3) áreas sarcomatosas e (4) invasão de outros tecidos oculares com ou sem extensão extraocular.

Com base nesses critérios classificamos a lesão como teratóide, devido à presença de áreas de diferenciação cartilaginosa e muscular. Pela ausência de critérios de malignidade, como áreas de transformação sarcomatosa, o caso apresentado foi classificado como benigno, apesar de apresentar grande dimensão.

Na maioria dos casos apresentados na literatura o meduloepitelioma tem origem a partir do epitélio não pigmentado do corpo ciliar. No nosso caso, a neoplasia parece ter tido origem a partir da retina, já que os cortes revelaram epitélio do corpo ciliar preservado e não foi reconhecida a estrutura normal da retina. Outra particularidade foi a observação de pigmentação na lesão, reconhecida ao exame macroscópico e microscópico do olho enucleado, porém não ao exame clínico. Na maioria dos casos relatados, o meduloepitelioma não apresenta pigmentação, embora o exame microscópico possa mostrar alguns grânulos de melanina. Um caso raro foi relatado de meduloepitelioma do corpo ciliar intensamente pigmentado tanto histologicamente quanto clinicamente(8).

Em série retrospectiva de 56 casos de meduloepiteliomas(7), 66% apresentavam critérios de malignidade, e dentre eles somente 17% tiveram extensão extra-ocular. Quatro pacientes (7%) morreram pela doença, sendo que todos apresentavam extensão extra-ocular no momento da enucleação. Assim, o fator prognóstico mais valioso parece ser a presença de extensão do tumor para a órbita(7), o que não foi observado em nosso paciente.

No mesmo estudo(7), a média de idade para o início das manifestações clínicas foi de 3,8 anos (com uma variação de 6 meses a 41 anos), contudo a média de idade à época da cirurgia e diagnóstico histopatológico foi de 5 anos (com variação entre 1 e 43 anos), demonstrando, muitas vezes, um atraso no início do tratamento, como foi observado em nosso caso. Talvez a demora no tratamento seja decorrente da necessidade de bom período de observação que justifique a conduta cirúrgica representada pela enucleação na maioria das vezes.

A idade ao início dos sintomas pode ajudar no diagnóstico diferencial com retinoblastoma. Quase 90% dos casos de retinoblastoma são diagnosticados antes dos 5 anos de idade(9), ou seja, geralmente em crianças mais jovens do que aquelas com meduloepiteliomas. Nossa paciente foi diagnosticada aos 9 anos de idade. Entretanto, vários casos de retinoblastoma já foram descritos em crianças mais velhas; aos 7, 9 e 10 anos(10), 12 anos(11) e também em adultos(12), tornando esse critério de valor relativo no diagnóstico diferencial entre essas lesões.

Nossa paciente apresentava baixa acuidade visual, leucocoria e estrabismo, o que foi observado com freqüência em outros estudos(4-8). Outros sinais e sintomas relacionados ao meduloepitelioma são: presença de massa branca retrolental, dor, proptose, rubeosis iridis, glaucoma secundário e catarata(4-7).

Cistos ou massas na íris, câmara anterior, ou corpo ciliar, glaucoma, catarata e proptose ou massa orbitária são os principais achados clínicos(7). A massa tumoral observada em nossa paciente apresentava várias formações císticas na sua superfície, o que nos permitiu fazer a hipótese diagnóstica de meduleopitelioma. Entretanto, a ultra-sonografia sugeriu a presença de microcalcificação no tumor, o que é raramente presente nos casos de meduloepitelioma(7) e apoiou o diagnóstico de retinoblastoma, pois é freqüentemente observada nesses casos.

Com maior freqüência os casos de retinoblastoma apresentam leucocoria e estrabismo, além da presença de massa no polo posterior. O retinoblastoma pode ainda ser bilateral, multifocal e familiar, características não observadas nos casos de meduloepitelioma.

Os exames complementares foram importantes no diagnóstico diferencial, pois, apesar de não demonstrarem padrão característico, puderam elucidar a presença de tumor intra-ocular e assegurar a necessidade de enucleação. Também demonstraram a ausência de extensão extra-ocular. Sabe-se que a aparência do tumor ao exame biomicroscópico e oftalmoscópico fornece os melhores subsídios ao diagnóstico; mas quando o tumor é observado na câmara posterior, estendendo-se posteriormente além da ora serrata ou localizado na retina ou nervo óptico fica impossível a exclusão de retinoblastoma.

Embora o tumor apresentado neste relato tenha sido classificado como benigno, pela falta de áreas de transformação sarcomatosa, de estruturas que lembrassem retinoblastoma ou de áreas de invasão neoplásica, o fato de ser uma lesão de grandes proporções e de crescimento aparentemente recente, justifica a conduta cirúrgica empregada. Também, sabe-se que mesmo tumores citologicamente benignos podem apresentar extensão para íris, córnea, esclera ou órbita. Por esta razão, todos meduloepiteliomas devem ser considerados potencialmente malignos, como recomendado por Andersen(13).

O tratamento do meduloepitelioma deve objetivar a intervenção cirúrgica precoce, na tentativa de se evitar a disseminação extra-ocular. A enucleação é a forma mais freqüente de tratamento, pois são geralmente olhos dolorosos, com pouca ou nenhuma visão, e portadores de uma neoplasia potencialmente maligna. O prognóstico é excelente quando a excisão é total. Tumores menores podem ser submetidos a iridectomia ou iridociclectomia, entretanto freqüentemente ocorre recidiva nesses casos, necessitando de posterior enucleação(7,14).

 

REFERÊNCIAS

1. Zimmerman LE. Verhoeff´s "terato-neuroma.". A critical reappraisal in light of new observations and current concepts of embryonic tumors. The Fourth Frederick H. Verhoeff Lecture. Am J Ophthalmol 1971;72:1039-57.        

2. Verhoeff FH. A rare tumor arising from the pars ciliaris retinae (terato-neuroma), of a nature hitherto unrecognized, and its relation to the so-called glioma retinae. Trans Am Ophthalmol Soc 1904;10:351-77.        

3. Grinker RR. Gliomas of the retina including the results of studies with silver impregnations. Arch Ophthalmol 1931;5:920-35.        

4. Hamburg A. Medulloepithelioma arising from the posterior pole. Ophthalmologica 1980;181:152-9.        

5. Green WR, Iliff WJ, Trotter RR. Malignant teratoid medulloepithelioma of the optic nerve. Arch Ophthalmol 1974;91:451-4.        

6. Reese AB. Medullo-epithelioma (diktyoma) of the optic nerve. Am J Ophthalmol 1957;44:4-6.        

7. Broughton WL, Zimmerman LE. A clinicopathologic study of 56 cases of intraocular medulloepitheliomas. Am J Ophthalmol 1978;85:407-18.        

8. Shields JA, Eagle RC Jr, Shields CL, Sing AD, Robitaille J. Pigmented medulloepithelioma of the ciliary body. Arch Ophthalmol 2002;120:207-10.        

9. Rubenfeld M, Abramson DH, Ellsworth RM, Kitchin FD. Unilateral vs. bilateral retinoblastoma. Correlations between age at diagnosis and stage of ocular disease. Ophthalmology 1986;93:1016-9.        

10. Binder PS. Unusual manifestations of retinoblastoma. Am J Ophthalmol 1974;77:674-9.        

11. Zakka Ka, Yee RD, Foos RY. Retinoblastoma in a 12-year-old girl. Ann Ophthalmol 1983;15:88-91.        

12. Takahashi T, Tamura S, Inoue M, Isayama Y, Sashikata T. Retinoblastoma in a 26-year-old adult. Ophthalmology 1983;90:179-83.        

13. Andersen SR. Medulloepithelioma of the retina. Int Ophthalmol Clin 1962;2: 483-506.        

14. Canning CR, McCartney AC, Hungerford J. Medulloepithelioma (diktyoma). Br J Ophthalmol 1988;72:764-7.        

 

 

Endereço para correspondência
Ramon Coral Ghanem
Rua Oscar Freire, 1702 ap.24
São Paulo (SP) CEP 05409-011
E-mail: [email protected]

Recebido para publicação em 04.09.2003
Versão revisada recebida em 08.03.2004
Aprovação em 21.03.2004

 

 

Trabalho realizado no Serviço de Retina do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo – USP
Nota Editorial: Pela análise deste trabalho e por sua anuência na divulgação desta nota, agradecemos à Dra. Clélia Maria Erwenne


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